7:54Ciência a serviço do mal

por Hélio Schawartsman, na FSP

Quando a tecnologia é posta para explorar vulnerabilidades humanas, a regulação se faz necessária

ciência pode ser perigosa. É o que ocorre quando ela é posta para explorar vulnerabilidades de nossos cérebros e produzir os chamados estímulos supernormais.

Os dias duros do Pleistoceno, durante os quais era difícil conseguir as calorias necessárias para manter-se vivo, nos transformaram em máquinas de procurar gorduras e carboidratos e acumular as sobras na forma de tecido adiposo. Funcionou bem até que inventaram o baconzitos e o cheesecake. A proporção de obesos e diabéticos no planeta explodiu.

Algo parecido vale para drogas. A destilação do álcool, a biossíntese da cocaína e a produção de maconha com níveis cada vez mais altos de THC agravaram nossos problemas com essas drogas. Era difícil tornar-se alcoólatra ou cocainômano consumindo só cerveja pouco fermentada e chá de folhas de coca.

E a coisa fica pior quando, além de desenvolver produtos cada vez mais viciantes, empregamos também técnicas de propaganda cada vez mais sofisticadas para convencer as pessoas a consumi-los. É o que acontece agora no mundo das apostas. Os cassinos vieram para os bolsos dos jogadores (celulares), que ainda têm de lidar com um tipo de publicidade particularmente enganoso, que, negando o básico da matemática, sugere que as apostas são caminho seguro para o enriquecimento.

Meus pendores libertários me impedem de defender qualquer tipo de proibição. Já vimos várias vezes que isso não funciona. Mas é perfeitamente possível regular, dando ao consumidor alguma chance de defesa contra os estímulos supernormais reforçados pela publicidade.

No caso do jogo, seria urgente banir a propaganda e possibilitar a autoimposição de limites. Ao criar sua conta para apostar, por exemplo, o usuário já indicaria o limite máximo de dinheiro que está disposto a perder por mês. Uma vez transposto esse limiar, recargas não seriam mais processadas. Não é uma bala de prata, mas ajuda.

O desafio das autoridades quando regulam produtos potencialmente viciantes é encontrar um balanço razoável entre a liberdade individual e a saúde pública.

7:38Poema do Menino Jesus

de Fernando Pessoa

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo a roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu. E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
“Se é que ele as criou, do que duvido.” –
“Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.”
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.

E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.

Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

15:52Cinco mil quilos de talento

Gerson Guelmann costuma dar presentes. Ele não sabe disso, por modéstia. A primeira vez que o vi pessoalmente foi no pátio em frente ao Palácio Iguaçu. Não sei como saiu do carro. Fiquei olhando de longe. Imaginei que pesava cinco mil quilos. Uma bengala o sustentava. Ele entrou e foi trabalhar junto ao seu saudoso amigo Jaime Lerner. Agora me veio que devo ter pensado: “Taí um homem é especial”. Sim, conhecia-o de nome. Certa vez cometi uma baita grosseria contra ele, escrevendo aqui neste mesmo espaço. Levei um cascudo, não do próprio, mas da mulher e musa que conheci algum tempo antes, quando novamente trabalhamos juntos. Ele pediu pra deixar pra lá. Eu deveria ter deixado antes. Nunca pedi desculpas. Ele sabe que o que nos uniu depois vale mais que isso. Amizade. Os cinco mil quilos dele sumiram com o tempo – porque D’us assim quis e a bariátrica também. Quando começou a vender esfiha com sua companheira gaúcha, novamente pensei – e isso não é comum: “Num falei que meu amigo judeu era especial?” Os árabes de Curitiba devem ter ficado felizes porque o produto era de primeiríssima qualidade. Sua história de vida – e morte na família, ampliou os limites de sua percepção da alma – e temperou-a. Escrevo isso porque fui dos primeiros a saber que abriria espaço na internet com um blog. Sábio, bebe na verve incomparável dos humoristas judeus. Abre espaço para histórias, cultura, venenos corrosivos, enfim, expande o que pouca gente conhece, sempre primando por deixar para outros espaços o trágico conflito que infelizmente permeia a região. No seu blog ele parece espalhar uma pílula da sabedoria que realmente vale de um povo. Mas tem mais! O presente citado no começo tem a ver com o texto publicado abaixo porque, de uns tempos para cá, assim, de repente, passou a escrever sobre assuntos que nos dizem respeito, ou seja, nós, brasileiros como ele é – e com uma maestria que o colocou rapidamente como um dos craques das letrinhas dessa Curitiba. Aliás, outro deste time, a quem continuo reverenciando – e a quem também fiz grosseria, como um ogro das entranhas do agreste alagoano, foi Guelmann quem me apresentou, antes de começar a mostrar o enorme talento: Rogério Distéfano. Agradecer é pouco o aprendizado.

15:04Suspiro, Betânia do Piauí, um Natal inesquecível e as emendas Pix

por Gerson Guelmann

gersonguelmann.com.br

A Coca-Cola tinha a tradição de fazer memoráveis campanhas de Natal. Não lembro de tê-las visto nos últimos anos, mas algumas, como a de 2012, marcaram época. Ela foi feita em uma comunidade rural chamada Suspiro, distante 15 quilômetros da zona urbana do município de Betânia do Piauí, cuja população total, segundo o censo de 2022, era de 6.220 pessoas.

Betânia fica distante 510 quilômetros de Teresina, a capital, e a pouco menos de cinco quilômetros da divisa com o estado de Pernambuco. No entanto, ainda mais longínqua era a chance de a pequena vila de Suspiro ser lembrada pelas autoridades, tanto assim que só saiu do anonimato por conta do comercial. Era uma das muitas comunidades pobres, isoladas e sem energia elétrica do sertão piauiense. À época, Betânia era o município com o menor número de residências ligadas à energia elétrica no Brasil. Não sei se a situação de pobreza endêmica mudou desde então. É pouco provável, especialmente considerando que em 2018 um ex-prefeito do município foi condenado por desvio de verbas públicas.

Suspiro simbolizava, e talvez ainda simbolize, um país que mesmo no século XXI padece com a falta de infraestrutura e serviços básicos. Essa dura realidade, paradoxalmente, fez da comunidade o cenário perfeito para um dos comerciais mais caros e bem produzidos daquele ano, exibido no intervalo do Fantástico de 23 de dezembro. O vídeo tocou os corações de muita gente e até hoje é lembrado.

Na campanha, o tradicional ‘Caminhão da Coca-Cola’ visitou Suspiro em parceria com a prefeitura local, levando a emoção do Natal às crianças e adultos. A iniciativa culminou, em 2015, na construção de uma praça de recreação batizada de ‘Clube da Felicidade’. O comercial mostrava crianças e moradores simples falando sobre suas expectativas para o Natal e o ‘Bom Velhinho’ – conceitos que sequer conheciam. No vídeo, via-se as crianças indo à escola na carroceria de uma caminhonete e jogando futebol com bolas artesanais feitas de plásticos e borrachas. A pureza dos depoimentos e a simplicidade dos personagens emocionaram o público, alimentando a esperança de melhores dias para a comunidade.

Contudo, ao revermos ações como essa, é natural que surjam perguntas. O que mudou em Suspiro? Será que a energia elétrica finalmente chegou? Como estarão os moradores que participaram do comercial, especialmente as crianças? Algum deputado federal destinou ao município uma dessas famosas ‘emendas Pix’ das quais tanto ouvimos falar?

Apesar das incertezas sobre o impacto dessas iniciativas, a ação da Coca-Cola mostra o poder transformador da esperança e da solidariedade. O raro momento de visibilidade para uma gente tão sofrida deixa no ar a pergunta: o brilho das luzes natalinas do comercial conseguiu iluminar também os caminhos para um futuro melhor para aquele povo ou tudo não passou de um ‘Suspiro’ e o silêncio voltou a predominar?

10:58Duas para inspirar

Duas do caderninho de um publicitário que foi ao Rio de Janeiro e anotou como possível fonte inspiradora para vender o peixe que cair na rede:

  • “Camarão que dorme vai de rodoviária” (na faixa puxada por um teco-teco na praia)
  • “Santos Dupão” (nome de lanchonete no aeroporto mais charmoso do país)

10:50Embaixo e de cima

Ao ler que o ministro Flavio Dino, do STF, suspendeu R$ 4 bi em emendas aos parlamentares e a Polícia Federal prendeu mais quatro na segunda fase da operação que investiga desvios de recursos públicos, corrupção e lavagem de dinheiro a partir da distribuição das tais, o Gaiato da Boca Maldita nem precisou pensar para cravar a estaca: “Se todo o dinheiro roubado sob o carimbo dessa coisa fosse recuperado desde a instalação da República, o Brasil ia olhar de cima países como EUA, China e os gigantes europeus e dizer: ‘Deve ser duro patinar no Terceiro Mundo”.

8:23Arembepe não é aqui

Amigo do blog ficou dez dias sem ver televisão e ler notícias na internet. O máximo de esforço que fez foi tomar água de coco com canudinho. Confessa que quase entregou os pontos para procurar um lugar com atração parecida com a que levou muita gente a formar a comunidade de Arembepe, na Bahia. Depois lembrou que lá, onde ainda existem hippies dos anos 60/70, o “progresso” instalou perto o polo petroquímico de Camaçari, o maior do hemisfério sul, com quase cem empresas. Aí ele desistiu, abriu a pasta de contas a pagar e foi forçado a lembrar que a vida continua daquele jeitinho de sempre.

8:05Para exame de consciência

Quantas das 700 mil mortes por Covid teriam sido evitadas no Brasil se Jair Bolsonaro não tivesse feito propaganda de cloroquina até para as emas do Planalto? Cem mil, 200 mil? Nesta antevéspera de Natal, cristãos que ainda incensam o presidente mais ímpio já visto no país deveriam fazer exame de consciência. É hora de penitenciar-se por tamanho pecado de lesa-humanidade, que médicos possuídos por ideologia simularam contar com apoio da ciência. (Marcelo Leite)