7:21Malafaia e o aborto

por Celso Rocha de Barros, na FSP

Deixem mulheres estupradas fora de maquinações para eleger presidentes da Câmara e Senado

Silas Malafaia é um profissional da sinalização de virtude com o sofrimento alheio. Ficou milionário entregando a seus seguidores certificados de bom comportamento cristão para quem exigir de pequenos grupos excluídos uma aderência à interpretação literal da Bíblia que ninguém, repito, ninguém no cristianismo moderno exige de si mesmo.

Sim, Levítico 18:22 e 20:13 proíbe a homossexualidade, mas também proíbe a cobrança de juros (25:37). O ex-banqueiro Paulo Guedes certamente já violou as disposições do Levítico mais vezes que o mais produtivo dos atores pornôs gays.

Nós, como sociedade, aprendemos que o mercado de crédito é um aliado do crescimento econômico, e aprendemos a respeitar os LGBTs. Nos dois casos, progredimos, e não acho que violamos a essência do evangelho.

O que já era errado na perseguição aos LGBTs cruzou a linha da indecência com o projeto de lei apresentado por Sóstenes Cavalcante, o homem de Malafaia no Congresso, que equipara ao homicídio o aborto realizado após 22 semanas de gestação, veja bem, para as situações em que a lei já permite o aborto, como nos casos de estupro.

Interrupções nessa fase da gestação são raras. A maioria das mulheres adultas sabe quando foi estuprada, sabe ir à polícia ou ao posto médico muito antes desse prazo. Mas crianças nem sempre entendem que foram estupradas. Podem não entender as mudanças fisiológicas da gravidez, podem ter vergonha de contar a seus pais.

Com isso o tempo vai passando. O risco de a criança, após ter sido estuprada na infância, ficar na cadeia sua juventude inteira por decisão de Silas Malafaia vai crescendo. É fácil para um médico ou juiz bolsonarista adiar a autorização para a interrupção da gravidez até o limite de 22 semanas, jogando a criança cada vez mais perto de uma juventude de cadeia que se seguiria a uma infância de abuso.

O plano é este: estabelecer a marca de 22 semanas e começar uma guerra, nos tribunais, nos órgãos públicos, nos conselhos de medicina, para adiar o aborto de todas as mulheres estupradas até depois desse prazo.

Deus sabe quando começa a vida humana. Nem eu nem Malafaia sabemos. Os cientistas não colocam essas questões da mesma forma que os religiosos, e a vedação bíblica é menos clara do que se pensa: em geral, quem defende que a vida começa na concepção precisa se apegar a versículos muito fáceis de interpretar de outra forma.

Veja como a questão é difícil: pelos critérios do deputado Sóstenes, se você fosse forçado a escolher entre atirar em um bebê recém-nascido ou em dois fetos de cinco meses, deveria atirar no recém-nascido. Você tem certeza de que isso seria certo?

Se não tem, pare de usar esse problema dificílimo para fazer pose de cristão convicto. Há muitos problemas éticos para os quais não sabemos a solução definitiva. Nesses casos, o Estado deve, como nas democracias modernas, estabelecer alguns critérios e prazos, deixando que, dentro desses limites, cada cidadã decida segundo sua consciência.

E, por favor, deixem as mulheres estupradas fora de suas maquinações para eleger presidentes da Câmara e do Senado, ou para chantagear governos de esquerda em troca de liberação de emendas.

12:59Prefácio

de Manoel de Barros

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
dependimentos demais
e tarefas muitas —
os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não que as moscas iriam iluminar
o silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
que as moscas não davam conta de iluminar o
silêncio das coisas anônimas —

12:36Disputa

E se um dia tudo estiver pacificado na rede estadual de ensino, não duvidem se não houver competições entre estudantes dos colégios cívico-militares contra os do parceiro da escola.

8:18JORNAL DO CÍNICO

Do Filósofo do Centro Cínico

A propaganda política do PSD é tão feérica que o eleitor pode pensar que até o dia da eleição não vai ter mais nada para se fazer depois de escolhido o novo prefeito.

7:41Carlos Cabral

por Carlos Castelo

Certa vez, Millôr Fernandes saiu-se com esta frase: “Depois de perder o bonde e a esperança, perdemos também o trem e a vergonha, o navio e o espírito público, o jato e a capacidade de indignação.”

De fato, se indignar, em nosso tempo, virou peça de museu. Ou até motivo para ser cancelado nas redes sociais (leia-se Moderna Inquisição).

Em vez de praticar cross fit, venho procurando fortalecer os músculos que me provocam raiva. Em várias áreas, diga-se, mas hoje falarei sobre gastronomia.

Quando passei a me entender como gente, para início de conversa, não usávamos esta palavrinha. No máximo, era culinária. E, olhe lá, por vezes era “a comida de fulano” ou “os pratos de sicrano”. Depois que a tal gastronomia entrou na conversa corrente, começou o pedantismo.

Agora estamos diante de uma empáfia nos bares e restaurantes que chega a intoxicar o fígado. Eu mesmo tenho preferido comer em domicílio a presenciar certas afetações. Dou um exemplo: se o garçom diz que o molho é uma redução, meu apetite já se reduz na hora. E a cavaquinha? Agora, tudo é cavaquinha, e não me refiro aos shows do pagodeiro Mumuzinho.

Foi num instante encolerizado assim que me lembrei daquele restaurante do consultor de vinhos Carlos Cabral, em São Paulo. Ficava na sobreloja de uma loja de vinhos, nos Jardins, e só servia bacalhau. Apenas umas três receitas do peixe. E o espaço devia ter, se muito, seis mesas. Era o suficiente para agradar gregos e lusitanos.

Ao entrar no térreo do estabelecimento, o cliente elegia sua garrafa nas prateleiras e subia aos domínios de seu Cabral. Ali, ouvia as particularidades de cada receita e era só esperar para se regalar. Nada de retrogostos, chiffonade, bisque e… cavaquinha.

Por outro lado, seu Cabral podia não contar com os maneirismos desses chefs millenials, mas era bastanteminucioso. E, se me permitem uma rima infame: cabal no bacalhau.

O melhor de tudo, porém, era o pós-almoço. Antes da “bica”, lá vinha o homem com uma garrafinha de Porto. Na última vez em que estive na casa, lembro-me de uma de suas histórias. Quando fui pegar a taça, ele me disse:

— Vai tomar com a mão direita ou a esquerda?

Fiquei embatucado com a pergunta, assim, de chofre. Seu Cabral então demonstrou todo seu conhecimento:

— Tome com a mão que quiser. Mas, no tempo de El-Rei, na távola dos nobres de Portugal, tomava-se o Porto somente com a esquerda. E a razão era simples: a destra precisava ficar livre para, em alguma circunstância emergencial, poder puxar o punhal da bainha.

Quando hoje me irrito com a pretensão das tascas contemporâneas, é porque tive o privilégio de conhecer cozinhas de grande simplicidade, mas sem nenhum simplismo, exatamente como a do seu Cabral.

(Publicado no O Dia)

7:31A direita parlamentar parece ter perdido sua bússola moral

por Oscar Vilhena Vieira, na FSP

Lira e seus liderados têm de explicar por que tanta violência contra meninas e mulheres

Com o objetivo de adular a extrema direita e constranger o governo, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, facilitou a aprovação de regime de urgência para votação do infame PL 1904/24, que equipara a prática de aborto ao crime de homicídio, mesmo nos casos autorizados por lei, se realizado após 22 duas semanas de gestação.

Conferiu urgência também ao mal dissimulado PL 4372/16, que pretende impedir a homologação de acordos de delação premiada de réus presos.

A movimentação parlamentar causou perplexidade mesmo entre aqueles que não mais se deixam surpreender pela voracidade e soberba do centrão e da extrema direita na promoção de interesses mais mesquinhos e pautas obscurantistas, em detrimento do Brasil.

O PL 1904/24 nada tem a ver com a proteção da vida. Trata-se apenas de uma medida hipócrita, voltada a restringir, ainda mais, o direito e a autonomia das mulheres. Como sabemos, a legislação penal brasileira apenas autoriza o aborto nas hipóteses de risco de vida para a mãe, gravidez decorrente de estupro e feto anencéfalo.

A maior perversidade do PL 1904/24 foi estabelecer às mulheres vítimas de estupro que decidirem pela prática do aborto após 22 semanas uma pena maior do que aquela atribuída aos homens que as estupraram. Sabemos que as principais vítimas são meninas e adolescentes estupradas por parentes e pessoas próximas, que encontram enorme dificuldade em denunciar abusos e recorrer aos serviços de saúde para realizar o aborto.

Como as experiências recentes de Portugal e Uruguai demonstram, retirar o aborto da clandestinidade e promover políticas públicas de prevenção da gravidez constitui a melhor ferramenta para reduzir abortos e proteger a vida de milhares de mulheres.

Essas mesmas forças parlamentares, que não se acanharam covardemente em propor maior punição a mulheres vítimas de estupro que optam pelo aborto do que a homens que cometem estupros, também não tiveram nenhuma cerimônia em propor medida legislativa voltada a facilitar a vida das organizações criminosas. Ao decepar o instituto da delação premiada, fizeram a festa de narcotraficantes, milicianos e corruptos, assim como militantes de grupos radicais que atentam contra a democracia.

O PL 4372/16, proposto originalmente por parlamentares de esquerda, à época da Operação Lava Jato, foi adotado e turbinado pela atual direita parlamentar, preocupada com delações de golpistas e milicianos que eventualmente atinjam Bolsonaro, familiares e simpatizantes envolvidos em outros crimes, como o assassinato da vereadora Marielle Franco.

O abuso de prisões provisórias para obtenção de delações, que motivou originalmente o PL, não depõe contra esse instrumento indispensável ao combate ao crime organizado, senão contra os magistrados que abusaram de suas prerrogativas para a obtenção de delações.

Como bem explicou editorial desta Folha, o instituto da delação premiada funciona como um forte incentivo para que membros de organizações criminosas contribuam com as investigações em troca de benefícios penais. Daí a sua relevância no combate de uma criminalidade cada vez mais organizada.

Cumpre ao presidente Lira e seus liderados explicar por que tanta condescendência com o crime organizado e tanta violência contra meninas e mulheres, mesmo quando vítimas de estupro.

Há algo de errado com a direita parlamentar brasileira, que parece ter definitivamente perdido sua bússola moral.