por Carlos Castelo
O homem que mora sozinho possui uma aura misteriosa. Não se sabe ao certo se ele escolheu a solidão ou se ela o escolheu, como uma companhia que bate à porta, sem convite, e decide ficar. Mas, ao contrário do que muitos pensam, o homem que mora sozinho não é uma figura trágica. Ele é, talvez, um dos grandes heróis do cotidiano, alguém que desafia o ritmo da vida a dois, da família numerosa, da conversa preenchida de banalidades.
Ser sua própria companhia exige coragem. É encarar o eco da quietude ao final do dia e fazer dele uma melodia agradável. É descobrir que a casa não é autolimpante, que o lixo não caminha até a porta por iniciativa própria e que as panelas, por mais que se insista, jamais vão se lavar por telecinese.
Ainda assim, ele não se queixa. Cultiva uma espécie de ironia, aquela que transforma as inconveniências em pequenas vitórias. Quando o arroz gruda na panela, ele não amaldiçoa; olha para aquilo como uma escultura e se permite zombar da própria inaptidão. Quando a lâmpada queima, e ele se demora para trocá-la, vive um tempo no escuro, paciente como um monge.
O homem que mora sozinho aprende cedo que a casa é uma extensão do seu corpo. Quando está inspirado, o apartamento é um santuário: livros empilhados ordenadamente, vinis tocando ao fundo, uma panela no fogo perfumando o ambiente. Nos dias em que o cansaço, ou a melancolia, o dominam, o lar assume um ar de abandono, respeitando a necessidade de pausa do seu habitante.
Há um tipo de liberdade que só ele conhece. Não há necessidade de consenso sobre o que assistir na TV, sobre o cardápio do jantar ou sobre a hora de dormir. Pode-se ouvir jazz às três da manhã ou decidir que o desjejum será às 11, acompanhado do cabernet que sobrou da noite anterior. Ele é o senhor do seu tempo.
E como se comportará numa noite de Natal?
Sem dúvida, será um ritual íntimo. Não haverá mesas fartas, nem risos em coro; haverá, quem sabe, uma vela acesa na mesa e um vinho derramado com cuidado na taça, um brinde a si mesmo e ao tempo que passa. Ele celebrará as ausências como quem acaricia memórias: a fragrância de um Natal antigo, o riso de quem já não estará ali, o eco de uma canção que há muito deixou de tocar.
A ceia será discreta, mas cheia de significados – um prato simples que carregará histórias. Nessa noite, ele olhará pela janela e sentirá que a cidade dorme diferente, iluminada por um tipo de esperança que nem sempre compreenderá, mas respeitará. E, entre um gole de bebida e o silêncio que parecerá maior que tudo, ele vai perceber: há algo de sagrado na solitude escolhida, com o vazio da casa guardando um espaço do que já foi e o que ainda poderá ser.
O homem que mora sozinho, por fim, é um amante da independência. Não da autodeterminação ingênua, mas a que cobra o preço da responsabilidade. Ele sabe que optar por conviver consigo mesmo é também escolher enfrentar os próprios fantasmas. Mas, em vez de fugir, os encara.
Eis aí uma figura que desafia clichês. Que não é eufórico, nem amargo; é apenas alguém que encontrou uma forma de habitar o mundo.
Por isso, o homem que mora sozinho é o rei dos animais.
(Publicado originalmente no Estadão)