por Carlos Castelo
O diálogo num shopping entre Jesus e Papai Noel transforma-se no regaste do verdadeiro espírito do Natal
Para Luísa Castelo Branco
Era noite de 24 de dezembro, e o céu estava tranquilo até demais. Jesus suspirava enquanto observava a Terra. Lá embaixo, era o caos: gente correndo para comprar presentes de última hora, crianças chorando no colo de Papais Noéis mal pagos, infindáveis promoções de queima de estoque na mídia.
— É isso que virou meu aniversário? — resmungou Jesus.
Ele olhou para um lado, olhou para o outro e, num estalar de dedos, desceu à Terra. Já estava cansado de ser lembrado só como figurinha de presépio empoeirado.
No meio da confusão de um shopping lotado, lá estava ele: Santa Claus, com sua risada e uma fila de crianças ansiosas. Jesus surgiu de repente. E não foi nada discreto. Aterrissou com luz ce-lestial, aquele brilho de quem multiplica pães no café da manhã. Todo mundo parou.
— Noel! Precisamos conversar — disse Jesus, a voz ecoando pelo corredor de brinquedos.
O velhinho, que estava ajustando o gorro, se admirou.
— Ah, é você! O aniversariante! O que o traz aqui?
Jesus cruzou os braços.
— O que me traz aqui? Ora, amanhã é MEU aniversário, Noel. Meu. E olha só! Eu estou lá no térreo, deitado num presépio de centro comercial, enquanto você está aqui, dando entrevista, ao vivo, até para a tevê aberta.
Santa deu uma risadinha sem graça.
— Olha, não é nada pessoal. Só que as pessoas gostam de presentes, entende? Eu sou mais, digamos, comercial.
Jesus ergueu uma sobrancelha.
— Ah, então é disso que se trata? Vender? Porque eu, pelo que lembro, ofereci salvação para a humanidade.
A multidão começou a cochichar. Era o tipo de conversa que ninguém sabia se podia gravar ou se seria censurada no YouTube. Noel ficou rubro — e não por causa do traje.
— Ei, mas eu também sou símbolo de esperança e alegria. Olha só para essas crianças. Eu as faço sorrir!
Jesus argumentou:
— E depois? O que elas aprendem? Que felicidade está num embrulho com um laço? Que Natal é só ganhar, ganhar? Não é as-sim, Noel. E, desculpe, você está monopolizando o palco.
Foi aí que uma criança puxou a barra da túnica de Jesus e perguntou:
— O senhor dá presente também?
Jesus sorriu e se agachou.
— Eu dou o maior presente de todos. Só que ele não vem numa caixa.
A criança pensou um pouco e perguntou:
— E dá pra trocar na loja se eu não gostar?
Enquanto o público ria, Papai Noel aproveitou.
— Viu? Você é muito abstrato. Eu sou prático. Digo “ho ho ho”, entrego um presente e pronto. Funciona!
Jesus propôs:
— Então, façamos assim: eu vou para o hall do shopping, você fica aqui. Vamos ver o que acontece.
Noel ficou meio em dúvida, mas aceitou o desafio. Antes, avisou:
— Você é que sabe. Mas já vou dizendo, eu sou um influen-ciador com bilhões de seguidores…
No hall, Jesus começou a falar. Ele não tinha renas, gnomos, nem sacos cheios de presentes. Só tinha a voz e sua mensagem so-bre o verdadeiro significado do Natal. As pessoas começaram a se aproximar daquele homem. Pouco a pouco, foram largando as compras. Uma mãe chorou. Um tio que empurrava um carrinho de supermercado cheio de panetones parou e ficou ouvindo.
Enquanto isso, Papai Noel via a fila ficar cada vez menor. As crianças saíam antes mesmo de tirar selfie. Uma olhou para ele e disse:
— Eu gosto muito do senhor, mas o moço lá embaixo tá fa-lando umas coisas bem legais.
Um tempo depois, Noel foi até o hall. Viu Jesus cercado por uma multidão emocionada, famílias se abraçando. Ele suspirou e disse para si mesmo:
— Tá bom, tá bom. Ele ganhou.
Depois foi anunciando, em voz alta:
— Pessoal, escutem uma coisa muito importante! Eu preciso admitir: ele é o verdadeiro motivo da festa. Não vamos mais nos esquecer disso, combinado?
O bom velhinho ia saindo quando Jesus o conteve. Abraçou-o, voltou-se para a audiência e declarou:
— A bem da verdade, não quero apagar o que o Papai Noel faz. Só queria que vocês enxergassem um pouco além dos embru-lhos.
E, naquela madrugada, o 25 de dezembro voltou a ser o que realmente importava.
De manhãzinha, Papai Noel retornou ao Polo Norte com uma ideia revolucionária para o ano seguinte: pilotaria um trenó cheio de árvores de Natal vivas para plantar. Afinal, o planeta tam-bém merece um presente.
*Publicado no Rascunho