6:27A minúscula arte de bloquear

por Giovana Madalosso, na FSP

Antes de fazer isso com seu chefe, certifique-se de que você é irrelevante o bastante para isso

Sou do tempo em que o verbo bloquear ainda não existia. Quer dizer, até existia, mas só lembrávamos dele quando um caminhão tombava na estrada e ficávamos horas esperando a polícia rodoviária tirá-lo do caminho.

Hoje percebo que, às vezes, a capacidade de bloquear fazia falta. Não era possível fazer isso no telefone. Nem na caixa de correio, que vivia atulhada de folhetos de propaganda. E muito menos na porta de casa —quem dera eu pudesse bloquear um vizinho chatíssimo que aparecia todo domingo na nossa soleira.

Se as redes sociais nos consomem, ao menos nos oferecem uma contrapartida: o discreto prazer de bloquear, que pode se expressar de diversas formas.

Das mais frequentes, o bloqueio romântico acontece justamente quando o romance acabou. Se o dedo apela para esta vingança é porque o amor (ou a possibilidade de uma boa trepada) já ruiu –embora um ou outro casal adore bloquear e desbloquear, bloquear e desbloquear, na esperança de que este vigoroso estímulo digital reavive a chama.

Outro bloqueio clássico é o ideológico. Praticado à exaustão no Brasil em 2022, segue excitando os dedos indicadores esquerdo e direito. Confesso que pratico bastante, provavelmente a modalidade de bloqueio que mais pratico, e me faz um bem danado, como ir a um spa, fazer um detox ou tomar um laxante.

Primo irmão do bloqueio ideológico, o estético também é altamente recomendável em casos de 1. frases motivacionais sobre o pôr do sol. 2. pombas voando com desejos de bom dia. 3. versos de Clarice que Clarice jamais escreveria. 4. fotos de família sempre feliz, em estado de maníaco de margarina. 5. correntes de qualquer tipo.

É nessas horas que você descobre de quem gosta, por quem nutre alguma simpatia. Há pessoas que mandam ou exibem alguns dos itens acima e eu chego até a achar engraçadinho. Há outras cuja imagem enviada nem carregou e já estou bloqueando.

Um pouco marxista, um pouco leninista, o bloqueio de classe serve para nos livrar dos intragáveis que não se constrangem em só circular pela área VIP da humanidade: sempre em piscinas de hotéis, sempre com drinques nas mãos, sempre com roupas caras que eles nunca repetem, são como náufragos cegos de um paraíso que jamais existiu.

Um dos mais saborosos bloqueios, o profissional exige altíssima discrição. Antes de bloquear seu chefe e outros indigestos colegas, certifique-se de que você é irrelevante o bastante para que seu gesto não seja notado —a irrelevância nunca foi tão saborosa.

Um bloqueio que não demanda cuidado, afinal, nunca será percebido, é o de celebridades. Elas nunca imaginarão que foram colocadas para fora da sua festinha, e deriva dessa porta fechada o grande prazer: nem a Vogue teria coragem de fazer o que o seu dedo indicador fez.

Infelizmente, ainda não inventaram o autobloqueio. Tem horas que estou de saco cheio de mim mesma, das minhas postagens literárias, do meu sorriso almoçando com amigos, da personagem bem-sucedida que criei para ofuscar a minha versão vulnerável, nervosa, cheia de manias.

Nessas horas, deleto o aplicativo. E então percebo que bloquear, por mais prazeroso que seja, não passa de mais uma demanda desnecessária que o Cavalo de Troia da tecnologia nos trouxe.

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