11:10Irrelevância social de uma plataforma digital

por Muniz Sodré, da FSP

O bloqueio do X mostrou que esses dispositivos são menos necessários do que se querem vender

O celular é a janela da alma no século 21. Um clichê que poderia passar batido, mas com um fundo de verdade levado a sério por especialistas em saúde infantil. Em meados do século passado, temia-se algo assim sobre a influência da televisão, milhares de páginas e de dólares foram gastos em pesquisas sem nenhuma conclusão. Sobre o dispositivo digital, a convicção é maior: deseducativo, viciante, mas tem pontos frágeis. Elimine-se uma plataforma, nada de relevante acontece.

Isso vem a propósito do bloqueio do Twitter/X pelo STF. Aos adictos à rede soou como medida antidemocrática. Chegou-se a escrever “Elon Musk é liberdade de expressão absoluta”. É que confundiram o natural lugar de fala do ato da fonação com discurso livre. A plataforma, o aplicativo são apenas simulações tecnológicas da base de toda comunicação concreta, isto é, do espaço e do tempo como meios de percepção e ação sobre as coisas. Suspendeu-se o produto no mercado de uma big tech que desrespeitou a soberania nacional, não a comunicação em que está assentada a liberdade histórica de expressão.

Se o bloqueio incidisse sobre um dispositivo institucional de mídia como jornal, revista, rádio, televisão ou a própria internet, aí sim, estaria sendo censurada a liberdade de um grupo logotécnico (jornalistas, editores), representativo de uma comunidade de leitores ou ouvintes. Seria impactante, como nas ditaduras, porque afetaria o espaço público. Mas espaço público não é câmara de eco, é a conversão político-social das opiniões em algo comum, a expressão civil.

Acredita-se que o Twitter/X animaria um debate racional. Mas este é troca de argumentos, e só se argumenta em lugar de fala confiável. Vozes fragmentárias, individualizadas e compulsivas não constituem debate. Isso é falatório, em que se enxerga menos do que é e mais do que supõe ter sido. É a “ideologia da pós”: pós-industrialismo, pós-modernidade, pós-dialética. O que era antes pertencia ao espaço-tempo das ideias de progresso contínuo e de ação social como fato substancial. A fala transitiva e a conversa como troca de posições mobilizavam a comunicação social sobre a qual se assentou a liberdade jornalística.

Agora, na pós-dialética, descobre-se que conversar é a coisa mais assustadora que existe. Diálogo implica cavar barreiras sociais e psicológicas entre um e outro, logo, consciência atenta. Tornada rara, atenção virou mercadoria valiosa.

O lugar vazio criado pelo materialismo prático desse novo tempo foi ocupado por máquinas inteligentes e pelo culto do dinheiro. Fala-se qualquer coisa o tempo todo para neutralizar o diálogo. Por isso, banindo-se um bunker de falatório desconexo, caldeirão de hostilidade, embora com ilhas informativas, expõe-se a falta de ancoragem nacional de um lugar de fala tóxico. A plataforma deverá retornar do banimento, mansinha, porque há muito dinheiro em jogo, sua razão de existir. Mas, se fosse embora, já iria tarde.

Por acidente, o bloqueio do Twitter/X mostrou um ponto fraco do poder digital: esses dispositivos são menos necessários do que se querem vender. Cabe a uma ética social de futuro, zelosa da dos filhos, a cadeia geracional, transformar por meio da educação o celular num utensílio apenas útil, como um canivete suíço, em vez de janela da alma de ninguém.

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