8:31Lembranças pequenas

por Mário Montanha Teixeira Filho

Algumas lembranças me vêm quando dou de cara com o cenário político que abriga o mundo contemporâneo. Lembranças e dúvidas. Tento entender o que acontece agora, mas não encontro nada de essencialmente novo, nada de emoção, nada de saudade. Desligo a tevê e procuro um caderno de jornal que – subitamente percebo – não existe mais. Fico um pouco sem rumo, e me distraio ao abrir um livro cujas folhas abrigam letras quase incompreensíveis, anotações que rabisquei muito tempo atrás.

Meu pensamento, então, volta ao Brasil do fim dos anos 1970, quando eu buscava, em panfletos semiclandestinos ou nos jornalões diários, notícias sobre o novo sindicalismo. Eram dias difíceis, de ameaças de retrocesso e arranjos legais absurdos. A ditadura, incomodada com as greves proibidas na região industrial de São Paulo, tentava sobreviver a qualquer custo, e não se constrangia em mudar as regras do jogo sempre que lhe convinha. 

Eu começava a ficar adulto, e meus olhos curiosos identificavam um movimento construído por operários de braços erguidos e mãos sujas de graxa, a desafiar a truculência das armas e a caretice dos milicos que haviam assaltado o poder. Os metalúrgicos de então carregavam uma esperança.

Esperança que levei para a faculdade de direito, numa época em que enxergávamos espiões nas salas de aula e ameaças de golpe de Estado que afinal não aconteceram. Sonhar coletivamente, naqueles dias, era uma expressão de liberdade. Nós estávamos vivendo a nossa juventude. E trabalhadores se juntavam a intelectuais e religiosos para fazer parte da história, formar um partido político e consolidar as transformações sociais desejadas. O futuro era logo ali, e a beleza estava em nossos rostos cheios de brilho e desejos. 

O País não seria mais o mesmo. O novo partido viria para ser instrumento de uma revolução. Ao menos era o que imaginávamos. A radicalização dos sonhos oferecia um caminho original e libertário – utópico? –, que nos animava. Por ela assinei uma ficha de filiação que não sei onde foi parar. Chegávamos perto do fim do curso, e o aborrecimento das aulas matinais perdia para as longas conversas na cantina, estendidas durante a tarde, já sob os efeitos dos muitos litros de cerveja consumidos ali mesmo. As primeiras eleições sob a estrutura partidária reformulada haviam acontecido um ano antes, em 1982. O socialismo estava na cabeça de uns gatos pingados, marginais políticos vigiados pela repressão, entre os quais eu me incluía com meus votos discretos. 

No começo dos anos 1990, restaurei minha ficha de filiação, desta vez me certificando de que ela chegaria às instâncias encarregadas das formalidades de praxe. Dei uma contribuição modesta para a sigla. Minha militância foi capenga. Em pouco tempo, perdi a paciência com reuniões e com os discursos grandiloquentes que proferíamos para nós mesmos. Mas procurei ser coerente com alguns princípios que considero importantes. Nunca me impressionaram os ventos da “modernidade” que levaram antigos companheiros a desistir da luta. Formei com os excluídos, em silêncio, até o dia em que fui embora, sozinho e sem olhar para trás. 

Volto à realidade. Tudo passou muito rápido, e pouca coisa mudou, a não ser meu corpo, que ficou velho. No mais, o de sempre: o mundo e seus mandatários horríveis, suas guerras, seus dinheiros, os tribunais de exceção, os discursos que mudam sem pudor, o pragmatismo e a intolerância – detalhes que a ingenuidade do menino que fui se recusava a enxergar. 

Uma ideia sobre “Lembranças pequenas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.