por Antonio Prata, na FSP
Para além do consultório, atuava como uma espécie de médico do velho oeste, sempre disponível para quem quer que fosse
De boas intenções o inferno está cheio. De inteligência a Terra também. Zuckerberg é inteligente. Putin, muitíssimo. Duas bestas. A inteligência não é uma virtude. Virtude é saber usá-la pra viver uma vida plena, verdadeira, “sem tempos mortos”, como desejou Simone de Beauvoir e desejando o mesmo para os outros. Acho que o nome disso é sabedoria.
A pessoa mais sábia que eu conheci chamava-se Antonio Carlos Cesarino. Era o pai do Dinho, meu melhor amigo dos 14 aos 20, meu irmão pra vida toda. Durante a adolescência tive o privilégio de conviver com o Dinho, a queridíssima Ana, sua mãe, com as encantadoras Julia e Gabriela, suas irmãs, e, claro, com o Cesarino.
Comecei admirando a sabedoria do Cesarino na forma com que ele tratava o corpo (ou a mente?). Era um cara parrudo, fazia exercício, até uns 70 ainda corria. Mas também tomava suas cachaças e fumava um cigarro ou outro no fim de semana. Fumar socialmente é, para mim, o suprassumo do autocontrole. Coisa de mestre zen.
Cesarino era médico, psiquiatra, psicanalista, foi analisando do Lacan, introdutor do psicodrama no Brasil, atuante na luta antimanicomial.
Dizem que na ditadura, trabalhando no HC, ajudou mais de um preso político, baleado ou torturado, a escapar pela janela. Décadas depois, numa escala (e escalada) menos heroica, mas não menos importante, ajudou muita gente alquebrada pelos tiros ou torturas da vida a encontrar saídas através do seu divã.
Para além do consultório, Cesarino atuava como uma espécie de médico do velho oeste, sempre disponível para receber quem quer que fosse para conversar, orientar, indicar outros profissionais.
Uma dessas conversas foi decisiva na minha vida. Eu tinha uns 17 anos. Meu pai havia cismado que minhas atitudes típicas de adolescente eram inequívocos sinais de um adulto incompetente, incompleto, um caso perdido. Perdido, não, pois para ele havia uma última esperança: que eu pegasse exército e “me tornasse homem”. (Hoje o perdoo, entendendo que surtos reacionários são típicos da “envelhescência”, termo que ele mesmo cunhou, numa crônica pro Estadão).
Fui, angustiado, conversar com o Cesarino, acreditando mais no que meu pai dizia do que no que a minha parca autoestima de 17 conseguia sustentar. Comecei a falar de forma confusa que “eu estava perdido”, “sem rumo”, não estava “dando certo”. Cesarino, num generoso ceticismo, pediu um dado mais concreto. Revelei, envergonhado, uma das principais acusações que recaíam sobre mim, prova definitiva da minha inadequação à vida em sociedade: eu acordava tarde.
“Eu tenho uma hipótese de porque você acorda tarde”. Encarei-o aflito, esperando que toda aquela bagagem vinda de Hipócrates a Freud, de Lacan à USP, dos orixás à Sorbonne revelasse uma “depressão”, “síndrome do pânico”, “sociopatia” ou coisa pior. Então, com um sorriso sério que não debochava do meu sofrimento nem o recebia como bem-vindo na sala, sugeriu: “aposto que você acorda tarde porque dorme tarde, acertei?”.
O céu escuro se abriu sobre Perdizes e um feixe de luz entrou pelo telhado. Eu não era um caso perdido. Eu não estava fadado ao fracasso. Eu acordava tarde porque eu dormia tarde! (Parece óbvio — e é. Nenhum sofrimento é muito original, visto de fora. Mas pra ajudar quem tá dentro, só um sábio, feito o Cesarino).
Nem sempre faz sol sobre o meu telhado, mas tenho dois filhos, trabalho, pago as contas, corro e tomo as minhas cachaças. Continuo acordando tarde, verdade, mas hoje com menos culpa, depois da longa jornada para a qual, faz três décadas, o Cesarino me despertou.