9:02Africano de primeira viagem

por Carlos Castelo

Ando lendo muitos autores d’África lusófona. Dentre os favoritos estão José Eduardo Agualusa, Pepetela, Nelson Saúte, Mia Couto, Ondjaki. Neles, há um universo de novidades que parece impossível. Eu sei, não há nada de novo sob o sol. No entanto, posso asseverar, o sol africano traz certas surpresas que as outras estrelas não proporcionam.

O contato com tais situações, e especialmente com o linguajar dos angolanos, moçambicanos, caboverdianos, me transpôs a um outro tempo. Foi pouco antes de me casar. Quis fazer uma viagem sozinho, para localidades nunca dantes percorridas, talvez até para comprovar se estava no ponto para estabelecer uma família.

Providenciei logo as passagens para os destinos escolhidos: Gabão, Costa do Marfim, Angola, Moçambique e Cabo Verde.

Angola e Moçambique estavam na lista porque queria conhecer, de perto, os rastros da guerra que acompanhava nas linhas de Mia Couto e Luandino Vieira. Costa do Marfim foi apenas por curiosidade pelo lírico nome da nação. Cabo Verde por causa da música, pela qual tenho devoção até os dias de hoje (leia-se Tito Paris, Teófilo Chantre, Humbertona, Bau e a diva dos pés descalços Cesária Évora).

Gabão continha uma razão à parte: lá morava um primo engenheiro, metido num projeto incomum. Estava construindo uma série de gigantescas garagens para tanques de guerra. Carlos, meu xará, com sua aventurosa estada em Libreville, foi quem, de fato, me inspirou a partir para aquele continente.

Lembro-me de num jantar, em casa de meus pais, o parente relatar que, certa vez, a esposa fora lhe buscar no Ministério da Guerra gabonês. Atrasada, saiu afoitamente do carro se esquecendo de colocar o véu sobre a cabeça. Da janela do gabinete, Carlos presenciou o princípio do apedrejamento. Se não fosse ligeiro até a calçada, a tragédia estaria consumada.

Quanto mais eu ouvia aquelas exóticas narrações, mais aumentava o desejo de me lançar à África feito um Gauguin na Polinésia Francesa.

Iniciaram-se os preparativos. A viagem principiaria pelo Gabão, onde me hospedaria com os familiares. Em seguida, iria me espraiando, em minha própria companhia, pelos outros cantões. Juntamente com os vistos, fiz as vacinas obrigatórias: febre amarela, hepatite A, hepatite B e tifoide.

Com tudo arranjado, no dia anterior ao embarque a reação aos imunizantes foi tão grande – febre, fadiga e tremores – que não apresentei condições físicas para embarcar rumo ao sonho africano. Cai doente do remédio.

Libreville foi indefinidamente adiada, os hotéis reembolsados, os tickets poderiam ser trocados no prazo de um ano.

E assim se deu. Dez meses depois, a esposa e eu usamos as passagens aéreas para ir a Portugal em lua de mel. Visitei os colonialistas, sim, mas ainda hei de render minhas honras aos, até hoje, colonizados.

(Publicado no O Dia)

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