por Wilson Gomes, na FSP
É evidente que para criticar Netanyahu não havia necessidade de evocar Hitler com retórica do Holocausto
Lula precisaria fazer tantas declarações sobre o conflito em Gaza, esse que divide o mundo? Certamente, não. Não há interesses nacionais implicados nessa guerra que exijam que o presidente se considere parte envolvida. Um chefe de Estado, além disso, tem canais de influência que não passam por declarações públicas.
Entretanto, mesmo que fosse inevitável dar declarações públicas, Lula poderia caminhar sobre o que é mais consensual e entregar a mensagem humanista que lhe interessa. “Não é uma guerra entre soldados e soldados; é uma guerra entre um Exército altamente preparado e mulheres e crianças” não é uma frase tão ruim.
Poderia ter parado por aí.
Há um consenso bem sólido de que os horrores que ocorrem em Gaza devem ser duramente condenados. Arriscando-se mais, poderia ir até à tese do genocídio. Não é tão consensual, mas aceitável diante de massacre tão pavoroso.
Obviamente, Lula teria mais credibilidade ou seria visto como menos parcial se condenasse igualmente pelo menos as mais clamorosas violações de direitos humanos, massacres e guerras injustas no mundo. Coisa que ostensivamente evita, alegando seletivamente desconhecimento ou prudência diplomática.
A condenação, contudo, não lhe pareceu suficiente. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus.” A primeira parte é inteiramente falsa, mas isso é o menos importante; o espantoso foi a tranquilidade com que o Holocausto entrou na narrativa do presidente.
É evidente que para criticar Netanyahu pelo que acontece em Gaza não havia necessidade evocar Hitler nem de usar Holocausto como arma retórica. O Holocausto tem que estar fora dos limites dos jogos retóricos de acusações políticas. É uma regra moral que não deveria ser transposta, um presidente progressista e humanista deveria saber disso.
A não ser que não dê a menor importância à dor que provoca em tantos o Holocausto. Nem ao significado deste evento para qualquer humanista. Nem todos os judeus são israelenses, os mortos nos campos de extermínio certamente não.
Nem todo israelense apoia Netanyahu, e a memória do Holocausto existe para nos lembrar que toda brutalidade humana dirigida contra um povo deve ser condenada. Não se pode menosprezar a dor de milhões e o significado do Holocausto simplesmente para provocar Netanyahu. Que, aliás, adora ataques como esses que servem para desqualificar o crítico como antissemita.
Ah, mas muitos judeus que criticam Netanyahu fazem essa comparação. Pois, que o façam, quem não pode fazê-lo é o presidente da República do Brasil. Ah, mas uma frase de Lula não pode indignar mais do que 30 mil mortos em Gaza. Bem, a frase do presidente, absolutamente evitável, não impedirá qualquer morte em Gaza e conseguiu atingir milhões de pessoas que nada têm a ver com esse conflito.
Ah, mas Lula se dirigiu a Netanyahu e não aos judeus. Ora, Lula tem mil caminhos para se dirigir a Netanyahu e poderia usar outros meios, mas deliberadamente escolheu fazer uma provocação infame que ofende até quem condena o primeiro-ministro de Israel.
Ah, mas Lula disse a verdade e a verdade precisa ser dita. Junto com a Presidência não vêm obrigações de ser o bedel do mundo. Quem “precisa” dizer as próprias verdades, apontar dedos e lutar por superioridade moral são militantes, não o presidente de todos os brasileiros.
Se, também para Lula, governar é incendiar a esfera pública com polêmicas verbais, está no caminho certo. Pode ser um caminho eficiente, muitas evidências o confirmam. Bolsonaro, que seguiu à risca este princípio, quase ganhou duas eleições consecutivas, apesar de ser, como ele próprio admitiu, um homem sem qualidades.
O avanço eleitoral dos populismos de extrema direita em todo o mundo também segue o preceito, pois, afinal, a serenidade é aliada da racionalidade e da construção de entendimentos, mas é no barulho, no divisionismo e na fúria que os radicais prosperam.
Lula, porém, precisa tomar uma decisão. Se quer ser o presidente da reconciliação ou alguém que ajuda a soprar as brasas da discórdia e atiçar brigas, tão ao gosto da militância. Ele sabe que não precisa se meter em todas as confusões do planeta e que pode planejar a comunicação presidencial para produzir a imagem de grande reserva moral internacional com a qual sonha nesse seu mandato.
Transformar entrevistas coletivas no estrangeiro numa espécie de cercadinho do Alvorada, de triste memória, não vai nessa direção.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada”