por Carlos Castelo
Dias atrás encontrei um colega cronista. Vou chamá-lo de Lisandro. Não o via há tempos. O companheiro me mandou uma mensagem onde revelava o desejo de conversar; marcamos num botequim no larguinho do Bonfiglioli.
Entre cervejas e acepipes, encetamos um longo papo sobre o tema que nos acompanha desde os tempos da faculdade: a crônica.
Obviamente, discorremos sobre Luís Martins, David Coimbra, Fernando Sabino, Sergio Porto e outros ícones do gênero.
A arenga esquentou ao entrarmos pela nova geração. Lisandro não era propriamente admirador da maioria deles, enquanto eu defendi alguns autores novos.
Comentamos ainda a ideia de que a crônica teria morrido. Conceito este defendido, em crônica, por um cronista finalista do prêmio Jabuti. Nesse ponto, Lisandro e eu tínhamos a mesma opinião. Afirmar que a categoria estava moribunda era uma provocação para que o público consuma mais textos do tipo.
Estava frio e passamos a complementar as cervejas com shots de steinhager. Molhar as palavras, ainda mais com a beberagem alemã, sempre leva a revelações.
Lisandro deu para falar de seu próprio trabalho. Antes, fez uma breve introdução elogiando meu estilo, concisão e fecundidade. Concordei no quesito produtividade. De fato, para ajudar na sobrevivência, naquele momento eu escrevia para dois jornais e duas revistas digitais, semanalmente.
Entendi ali que o pedido para conversar tinha a ver com o fato de Lisandro estar numa crise de criatividade. Angustiado, admitiu não conseguir colocar na tela mais nada que prestasse. Talvez a bebida tenha soltado sua língua em excesso e confessou, inclusive, estar adotando práticas heterodoxas em sua longa trajetória de autor.
Curioso, pedi que me contasse quais eram os expedientes.
Relatou-me então que vinha pegando temas de cronistas do passado e os “atualizando”. Deu como exemplo um material de Machado de Assis, do livro Bons dias! E outra temática proposta por Marques Rebelo, em seu O Trapicheiro. Lisandro, pelo que relatava com ares de emborrachado, tinha se tornado um plagiário juramentado.
É claro que eu não seria indelicado a ponto de jogar mais lenha na fogueira. Entrei pela via diplomática.
Tranquilizei-o afirmando que sabia de casos de outros colegas de ofício que, em instantes de secura, faziam o mesmo artifício. Que não era o ideal, mas acontecia nas melhores famílias. Normal, normalíssimo.
O semblante de Lisandro se iluminou. Na sequência pediu ao garçom que trouxesse a garrafa do destilado à mesa e fizemos outros brindes.
Quando o clima se amenizou, veio a maior das confidências. Trôpego, Lisandro foi até o carro e voltou com a prova de um livro nas mãos. Era o seu mais recente trabalho, uma alentada reunião de crônicas.
Olhou-me nos olhos e declarou que agora se sentia bem melhor. Aquela sua obra tinha sido inteiramente baseada no meu mais recente livro de crônicas. Ele o havia colocado numa plataforma de Inteligência Artificial, solicitado que os nomes dos personagens fossem alterados, e as tramas “atualizadas” para o estilo de suas narrativas.
Concluiu se declarando confortado por saber que eu achava normal aquele procedimento.
Por fim, levantou a taça de steinhager, mas, dessa vez, brindou sozinho.
(Publicado no Estadão)