11:40Poesia em tudo

*O lançamento do livro acontece hoje (13) das 18h às 22h no Herval Bar (rua Schiller, 295 – Cristo Rei – Curitiba)

por Mário Montanha Teixeira Filho

Em “Alpendre”, Daniel Pala Abeche adota o paradoxo como técnica de construção de versos e histórias. A começar pelo título principal, que sugere proteção, cobertura ou abrigo, mas não fecha nenhuma porta para a criatividade, não impede que ao sentir profundo de quem escreve se juntem desejos improváveis, parecidos com inconformismo, e pensamentos conflituosos. Não por acaso, o autor anuncia, ali mesmo, a despretensão de seguir por caminhos fáceis, de se acomodar ao conforto das coisas postas. E adverte que a sua poesia transitará “entre moradas e não lugares”, o que combina com o percurso de um artista de talentos múltiplos.

Nascido no interior de São Paulo, Daniel quase se fez engenheiro químico em Maringá, no Paraná. Quase, pois decidiu abandonar a perspectiva de um cotidiano de cálculos, laboratórios e fórmulas complexas, característico da profissão que teria pensado seguir. Foi quando redirecionou a sua formação acadêmica para as áreas de comunicação social, filosofia e semiótica. Nesse ambiente, desenvolveu estudos mais próximos dos temas que verdadeiramente o apaixonam: a música, a palavra e a poesia.

A literatura agradece. Em seu terceiro livro de poemas, Daniel traduz originalidades e reúne uma profusão de sutilezas. Isso desde os prolegômenos, como diriam os grandiloquentes, que explicam a sua estrutura. Feitos alguns agradecimentos rápidos, o poeta cita Ludwig Wittgenstein, filósofo da sua predileção, ao lado de Nietszche. O austríaco de nascimento diz de pessoas “frágeis demais para quebrar” (“também faço parte delas”, reconhece). Na continuidade, vem Raul, com “a letra A tem meu nome”, na antessala da descrição de como os versos se distribuem no conjunto da obra. Os capítulos, cada qual identificado por uma palavra, apenas, se ajeitam de modo a formar um poema concreto, à espera de arremate gráfico.

Tudo faz sentido, então. Porque em tudo, até mesmo na sua apresentação, distante das armadilhas do burocratismo, “Alpendre” é poesia. E é poesia que conduz a lugares que salvam. Poesia feita de contradição, ofício redentor que anima e orienta o bardo (“a poesia me pegou / pelos ralos esparsos cabelos ainda que me restam”). Ele, que se submete a ela: “perco as rédeas, me delimito em arestas / e a deixo me guiar / rumo a não lugares / que me salvam”. O que vem depois são fragmentos de lembranças, detalhes do cotidiano, a peregrinação sofrida entre o real e o imaginário.

 

“Uso a palavra para compor meus silêncios”. A frase é de Manoel de Barros, mestre inspirador da poética de Daniel, artesão da doçura, da natureza, da capacidade de retratar o simples. Essa aproximação singular e bela entre duas fontes criadoras separadas por gerações habita vários poemas radicais, de não-partir. Poemas que prestam atenção no “vapor que exala / de uma xícara de chá / na tarde chuvosa / que nos abraça”. Ou que simplesmente lembram que “morar é deixar que algum lugar / nos habite e nos habituamos / a chamar de lar”. Memórias de uma casa, como Armando Freitas Filho enxergou seus mortos nos objetos de quartos e salas, como Manoel e sua disposição de criança, como a busca incessante do poeta de “Alpendre”, para quem “o infinito só existe na infância / e a infância é um poema”. Mais uma vez, a poesia, “essa corrente que nos amarra / à liberdade de ser quem somos”.

 

Corrente e liberdade, chegada e partida, agreste e urbano, os opostos se atraem numa sequência de digressões sobre a angústia de não saber o que virá. Ao enfrentar a complexidade do tempo e seus mistérios, Daniel esbarra na incerteza de um relógio invertido, de “taque tique” retrógrado. Antes, o desabafo: “dilacero / o relógio e atiro / o cronômetro contra a parede”. Adiante, a subversão da trajetória conduzida pelos morangos silvestres de Bergman – o passado reconstruído em sonho e pensamento – para entregar à filha um conselho de resistência: “seja o que quiser, filha / quem nos limita são pessoas / que às vezes nem pessoas são / […] seja o que você quiser / seja sua própria viagem / seja paisagem, seja passagem / seja movimento / seja nuvem, filha”.

 

O ato de resistir, projetado na doce presença da criatura amada, se encaixa num tempo de humanidade perversa e estética medonha. “Aquele que esbraveja contra o diabo / toma do mesmo veneno de lúcifer”. Na “confusão dos juízos”, então, forma-se uma realidade triste, “promissora de retrocessos”. Não soa estranho – e nem poderia ser de outro modo – que vários trechos da coletânea fotografem um território arrasado pelo obscurantismo, pelo triunfo da feiura e da caretice, pelo pacto com a morte tolerado pelos donos do poder.

 

Como a serpente do sonho de Silvio Rodríguez (“la mato y aparece una mayor”), a tragédia se insinua para sempre, monstro a lamber a maldade humana, a que mata (“adoeceu de injustiças / padeceu de injúrias / morreu de brasil”). O poeta, porque faz da palavra a sua razão, a força contra o avanço inquietante do assombro, o remédio da alma, o poeta contra-ataca: “em tempos de guerra / me armo de qualquer coisa / que seja semeadura / uma armadura contra / o ódio que inóspitos / pulverizam em meu jardim”. Vale o esforço. Afinal, “suave só os ombros / dos indiferentes”.

 

Pródigo em imagens que derrubam as fronteiras entre o pessimismo e a esperança, “Alpendre” é regalo poético de excelência, peça literária imprescindível. Na expressão do seu autor, é “o asfalto que me esfola / o rural que me adorna”. Ou a síntese da entrega por inteiro: “me disperso em versos / me diluo em terra / sou todo palavra”. Na despedida do livro, Daniel faz uma breve reflexão existencial, e pede em seguida: “ao sair / apague a luz / por favor”. Que se cumpra o comando. Ainda assim, nada mais poderá ser como antes. A mensagem fica, ficam as perguntas não respondidas, a emoção do poeta. O desfecho, diria Manoel de Barros, é a representação da vida, “igual quando Carlitos vai desaparecendo no fim de uma estrada”. Uma estrada a desvendar paisagens em que tudo é poesia, “entre moradas e não lugares”.

[Posfácio do livro “Alpendre (entre moradas e não lugares)”]

 

Lançamento do livro: 13 de maio de 2023

Local: Herval Bar (rua Schiller, 295 – Cristo Rei – Curitiba)

Horário: das 18h às 22h

 

Para adquirir: https://www.editorapatua.com.br/alpendre-entre-moradas-e-nao-lugares-poemas-de-daniel-pala-abeche/p

 

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