por Fernando Muniz
Dois anos e o balanço não poderia ser melhor. O comandante das operações de reeducação, lobo cinzento de garras esmaltadas, uniforme impecável e botas negras, termina de fumar um charuto e se dirige à bancada do gabinete, no segundo andar do quartel-general. Abre a janela e admira a divisão de jovens lobos, milhares, circunspectos, solenes em seus uniformes grafite e baionetas, todos em posição de sentido.
Enche o peito e olha para o ajudante de ordens com ar grave; recebe em retorno um sinal com a cabeça, confirmando que os preparativos correram de acordo com o planejado. É chegada a hora; liga o microfone.
“Camaradas, mais uma vez fomos tirados de nossos lares nas florestas do Norte para defender os valores máximos da Nação, seu estilo de vida e padrões de comportamento sadios, que surgem dos ensinamentos de Sassafrás, colocados em risco por forças obscuras que, em verdade, pretendiam destruir nossas instituições. E enfrentamos sem tréguas nem misericórdia os inimigos da Nação, os que viviam e os que ainda vivem entre nós, valem-se da nossa boa-fé e se infiltram em nossas casas, empregos e ambientes coletivos a espalhar ideias estrangeiras, tóxicas e subversivas. Não há como fugir à necessidade de sacrificarmos o bem-estar, em especial a liberdade, igualdade e fraternidade em prol da Segurança da Nação. Ainda mais quando essa segurança é ameaçada pela covardia, hipocrisia e baixeza de um “espírito de hiena”, que se entranha em todas as camadas da Nação e corrói as bases que sustentam nosso bem-estar. Direitos são como a manteiga que se passa do pão; podemos viver sem a manteiga, mas jamais sem o pão, jamais sem a proteção de Sassafrás e dos que se dedicam, dia e noite, como nós, a exterminar aqueles que se opõem a tudo o que representamos. Não sabemos quanto tempo mais devemos abdicar de nossas vidas, de nossos pais, mães, esposas e filhos. Não sabemos quanto tempo devemos permanecer longe das florestas do Norte, que tanto temos saudade; a Nação acima de tudo, Sassafrás acima de todos, é o que nos move a continuar a luta contra os inimigos, que, embora eliminados fisicamente, continuam a inspirar os incautos, exigindo um combate constante, do qual não podemos nos furtar. Vigilância é nossa sina, prevenção é a nossa cruz, combate é a nossa missão. Juntos provamos, mais uma vez, com abnegação e grandes sacrifícios, que não fugimos à luta. E devemos seguir assim; para nós, não há alternativa, não há recuo, não há retirada”.
Os lobos, de patas direitas levantadas, saúdam o comandante com o máximo respeito. Cai a noite sem nuvens e a lua, cheia, banha a divisão, suas brigadas e regimentos, que se espalham pelo campo a perder de vista. Os uivos, estrondosos e ao mesmo tempo, cortam o céu e são ouvidos a quilômetros de distância.
O comandante se retira da bancada, à procura de um novo charuto. Uma sensação de plenitude o envolve; pensa ser chegada a hora de voltar para casa. O trabalho, daqui por diante, pode ser executado por outros, feito os cães. E leva um susto; Sassafrás em pessoa, depois de vários meses recluso, está à sua espera, sentado em sua cadeira, na penumbra do gabinete.
“Boa noite, comandante”. Oferece fogo e o cortador, embora permaneça o tempo todo com a mão direita na cinta, próxima ao punhal. O lobo congela no lugar; Sassafrás se aproxima e puxa o punhal.
“Tome. Mereceste”.
O lobo, desnorteado, aceita o presente. “Muito obrigado”. Passada a surpresa, observa o Líder Máximo. Obeso, envolto em um robe de seda vermelho, mal consegue caminhar. É uma sombra daquela força da natureza que se levantara do túmulo para tomar a Nação de assalto. Mas a sua presença, a sua aura, não deixa de causar temor. Quem, por desventura ou desfaçatez, perdeu isso de vista, já não está mais neste mundo. Sassafrás pode ser velho, mas não está morto.
Embora tenha recebido o punhal de presente, o comandante percebe que o Líder está a acariciar um novo. Sassafrás sorri. “Agora temos a mesma arma”.
“Sim, ó Líder Máximo. Mas por uma deferência sua, não por merecimento meu”. Sassafrás dá uma risada; lobos são mais inteligentes que hienas – mais espertos com certa são.
Sassafrás deixa o novo punhal na cinta, levanta-se da cadeira e, ajudado por taifeiros, dirige-se à porta.
“Até breve, comandante. Até a próxima comemoração”.
Por enquanto.