9:51O desembargador e os blindados

por Elio Gaspari

Japona não é toga, e toga não é japona

O desembargador Wilson Alves de Souza, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, concedeu uma liminar suspendendo a compra de 98 blindados do consórcio italiano para o Exército a um custo de R$ 3,3 bilhões. Liminar é apenas uma liminar, mas a argumentação do magistrado foi ao mesmo tempo ingênua e onipotente. Ele escreveu:

“Vê-se claramente que o ato atacado não atende aos pressupostos de conveniência e oportunidade, pois é evidente a falta de razoabilidade, desvio de finalidade, ilegalidade e até mesmo de elementar bom senso, pois outra classificação não há quando ao mesmo tempo em que se faz cortes de verbas da educação e da saúde por falta de dinheiro, se pretende comprar armas em tempos de paz.”

O Exército precisa de equipamento. O desfile de blindados queimando óleo na Praça dos Três Poderes no ano passado pode ter dado satisfação àqueles que viam na exibição um ato de arrogância, mas um país não melhora com militares desequipados. A despesa pode parecer excessiva. A assinatura do contrato a poucas semanas da posse de um novo presidente é sem dúvida uma iniciativa meio girafa, até porque o edital de consulta pública da compra saiu há mais de um ano. Se há argumentos para suspender a assinatura do contrato, alguns dos que o desembargador usou não ficam de pé.

Usado da forma preferida pelo magistrado, o argumento de que faltam recursos para a educação e para a saúde é demagógico. A aceitá-lo assim, as Forças Armadas não poderiam comprar sequer uma pistola. Se o desembargador viu “ilegalidade”, fará muito bem em expô-la. Quanto à “conveniência”, “falta de razoabilidade” e de “elementar bom senso”, o doutor foi além de sua toga. Há séculos foi observado que o bom senso é a coisa melhor partilhada do mundo, pois cada um acha que tem o suficiente.

Assim como as Forças Armadas viram-se numa encrenca despropositada quando foram apresentadas como instância superior para auditar urnas eletrônicas, não compete ao Judiciário envolver-se no varejo das atribuições do Executivo.

A Justiça brasileira cresceu tornando-se baluarte das instituições democráticas, mas apequena-se quando vai para a várzea. Liminar é liminar, mas decisões de magistrados não precisam ser contaminadas por aulas de ciência política ou de gestão orçamentária.

A onipotência apequena as instituições. Assim como a corporação militar viu-se arranhada com a militarização do Ministério da Saúde durante a pandemia, a Justiça sofre quando magistrados tomam decisões com maus fundamentos.

Nos últimos quatro anos o país conviveu com o assombro de um presidente que se referia ao “meu Exército”. Passará. Há mais de meio século a Viúva arca com projetos para a fabricação de viaturas. Um, do Exército, acabou fazendo fogões. Outro, da iniciativa privada, fez blindados, mas a empresa se meteu em delírios internacionais e acabou quebrada. O festejado tanque Osório teve um de seus protótipos arregimentado numa massa falida. Na licitação de 2022 o vencedor foi um consórcio italiano, seguido pelos canadenses e chineses.

Cada um pode ficar no seu quadrado e todos sabem suas dimensões. Faz tempo, o senador Auro de Moura Andrade, aquele que declarou vaga a Presidência da República em 1964, com João Goulart no exercício constitucional do cargo, ensinou que “japona não é toga”. Pois toga também não é japona.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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