8:40Máquina Pública

de Fernando Muniz 

Não se enterram mais cadáveres hoje em dia. Não há tempo; a defesa da Nação consome tempo, energia, recursos e, quem cai, fica por ali mesmo. Ou enche necrotérios, campos de trabalho e até o pátio dos fundos do Palácio. Nem as fornalhas conseguem vencer tantos corpos e carcaças. Além disso, por que cuidar dos mortos se nem dos vivos é possível dar conta?

Muitas vezes não se enterram cadáveres porque não há quem os reclame. Famílias inteiras evaporam em questão de dias, seja pela fome, peste ou por obra dos órgãos de segurança.

“Enquanto é inverno, tudo bem. Dá para empilhar e deixar tudo como está. Mas quando o verão chegar…”. O chefe dos necrotérios, um cão de guarda parrudo, sem raça definida e sem qualquer senso de humor, coça a cabeça em desalento.

O grande problema é arrumar quem irá empilhar os corpos. Os funcionários do necrotério se recusam. “Nosso negócio é cadastrar o morto, identificar a causa da morte e encaminhar para as câmaras frigoríficas. Se elas estão cheias, isso não é problema nosso”.

“Quem matou que empilhe!”, gritam os mais irritados. “Se é por roubo, a polícia que cuide; se é fuzilamento, que as Forças de Segurança façam o trabalho”. Os funcionários não se conformam com o acúmulo de trabalho. “O que temos a ver com o fato de Sassafrás ter estabelecido metas para prisões e execuções? Não recebemos bônus, feito as hienas e cães”.

Um dos funcionários resmunga, lá do fundo do armazém. “Mas você não sabe o porquê dessas metas?”

“Por quê?!” A pergunta parece absurda, afinal se existem metas é porque alguém, em algum Ministério, decidiu assim.

“Se nenhum morto vier do Departamento de Informações, as hienas ficam sem bônus”. Silêncio. Embora exista ordem direta de Sassafrás a respeito do consumo de corpos e carcaças, as hienas cuidam dos seus cadáveres por lá mesmo. E os cães, sabendo disso, batem meta após meta. Líderes de matilha escrevem cartas e mais cartas ao Ministério, implorando pelo aumento dos percentuais.

Pedidos concedidos, um após o outro, o que força os chefes de necrotérios a confiscar galpões, armazéns e até teatros e cinemas, diante da fúria das Forças de Segurança. Qualquer deslize, maledicência, malquerer ou desconfiança é base para o fim sumário.

Pouco importa se a acusação é verdadeira ou não; o acusado, por certo, deve ter feito alguma outra coisa, muitas vezes que sequer foi descoberta ainda. O mal deve ser extirpado mesmo antes de vir à luz e as execuções previnem, por óbvio, que aconteça alguma atrocidade com os membros sadios da Nação. Antes até que o malfeitor pense em cometê-la.

Afinal, quem é sadio não se envolve com o mal.

Quem não deve não teme.

Ou deve?

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