por Fernando Muniz
O Despertar de Sassafrás encheu de esperanças o casal de camundongos; seria o rompimento de todas as amarras, costumes retrógados e preconceitos de filo, classe, ordem, gênero ou espécie. A mensagem era de libertação para os que, como eles, viviam confinados embaixo das calçadas das cidades e só saíam dali para mascatear ou caçar comida, tratados como estranhos naquela terra que, desde os bisavôs, chamavam de lar. Novas oportunidades de vida e de integração ao mundo exterior; um futuro melhor se anunciava. Todos teriam o seu lugar, em torno da unidade da Nação.
Assim que os expurgos de lobos viraram rotina e, a seguir, os de porcos, ele acreditou na versão oficial de que recebiam o tratamento justo por serem inimigos da Nação – embora os lobos tenham reconstruído o exército e os porcos o serviço público em torno das ideias de Sassafrás. No momento em que as hienas começaram a assumir os postos-chave do Palácio ele saudou esse movimento como prova das oportunidades para todos. Quando as autoridades fiscais confiscaram suas mercadorias sem direito a defesa, sob o pretexto de que serviriam para pagar multas por infrações que ele nunca tinha ouvido antes, buscou junto aos familiares alguma ocupação para, ao menos, dar de comer aos filhos. No dia em que as Forças de Segurança apareceram em sua casa, sem aviso e deram a ele duas horas para arrumar as malas e partir para trabalhar nas minas de cobre no leste do país, não se abalou; juntou suas coisas, passou as tarefas da escola com os filhos e beijou a esposa na testa, tentando acalmá-la.
“Logo estarei de volta, querida” – embora soubesse, por vizinhos e pelos colegas mascates, que os camundongos estavam sendo mandados para campos de trabalho forçado, nos lugares mais distantes e inóspitos da Nação, sem endereço certo nem garantia de retorno.
Mas o trabalho sem remuneração nem dia de descanso, as torturas, humilhações, fome e frio nunca o abalaram. Escrevia à família cartas cheias de amor e ternura, pontuadas com observações sobre a chuva ao bater nas encostas próximas ao seu alojamento, ou a evolução das nuvens, ou as primeiras neves anunciando o inverno, em um falar de outro mundo que trazia saudade e boas lembranças.
Aquelas imagens, compartilhadas em papéis sujos de graxa, borravam todo o terror ao redor. Talvez, por soarem tão alucinadas, é que chegavam ao destino. Ou quem sabe mesmo o censor mais severo, com esposa e filhos, tenha percebido que, ao escrever, aquele mascate inofensivo apenas queria a sua família junto a si, um alento que o mantinha quieto, sem causar problemas.
Até o dia em que as cartas param de chegar.
Tanto a esposa como os filhos acabaram convocados para os campos, como a certa altura todos os camundongos o foram, em idas e vindas desenhadas para esfacelar indivíduos e torná-los um gado entorpecido, a satisfazer os projetos de Sassafrás.
Embora chicotes e privações tentassem dobrar a família, não apagaram a imagem do mascate e sua bondade sem fim, desapegado das coisas mundanas, ocupado com a Natureza e seus mistérios, como um junco de fábula, vergado até o chão enquanto a tempestade não passa e os carvalhos tombam, um a um, raízes expostas ao céu.
Os dias seguem e a esposa e filhos põem-se de pé, mesmo espalhados e sem saber quem continua vivo. Limpam feridas, consertam rasgos nas roupas, colocam os móveis que ainda prestam no lugar e tentam pregar portas arrombadas nos caixilhos.
E se põem observar as nuvens.
Quietos, admiram a claridade ir embora e a terra ser envolvida pela sombra, apostando que, durante a noite, a chuva irá cair e, no dia seguinte, a terra será engolida pela luz. Ou um vento vai levar aquelas nuvens embora e a tempestade irá atormentar algum outro lugar. Ninguém consegue prever o rumo das nuvens e não se sabe o porquê dessas idas e vindas, mas eles têm a convicção – o mascate a tinha – de que as nuvens e suas evoluções, o seu sumiço por meses a secar a terra, ou a sua concentração até ficarem negras e encharcarem os pastos a ponto de os animais não conseguirem comer, é um mistério que vale a pena admirar, que se renova e os mantêm despertos; uma incerteza que os alivia, porque tudo o que vem, vai.
Porque tudo passa.