por Ricardo Araújo Pereira
Se comédia é equivalente a uma agressão, o fato de as pessoas terem poder não torna uma piada legítima
A quantidade de pessoas que tentaram estabelecer uma ética do riso é impressionante. Mais impressionante ainda é o fato de todas terem falhado. De fato, a tarefa não é fácil. O mais provável é que seja mesmo impossível. Determinar que há coisas tão sagradas que não é lícito rir delas esbarra na circunstância de pessoas diferentes darem valor a coisas diferentes. A proposta que hoje parece ser prevalecente diz o seguinte: só é lícito fazer “punching up”, isto é, podemos fazer piadas apenas acerca de quem ocupa uma posição de poder superior à nossa. Pessoalmente, tenho quatro objeções à ideia de “punching up”.
Primeira: comédia não é “punching”. Piadas e violência são coisas de natureza muito diferente —e, portanto, essa é uma péssima metáfora para pensar sobre o assunto. No dia 28 de março deste ano ficou muito evidente a diferença entre piadas e violência, quando Chris Rock fez uma piada e Will Smith respondeu com violência. O fato de o agressor não ter sido imediatamente expulso da sala, e de muita gente ter considerado que a agressão era uma resposta compreensível e até adequada à piada, parece indicar que, por incrível que pareça, o episódio não foi suficientemente pedagógico.
Segunda: como é óbvio, humoristicamente é mais interessante fazer piadas acerca do rei do que acerca do pajem. Mas, se estipulamos que é ilegítimo fazer piadas acerca do pajem, nesse momento ele adquire um direito que nem o rei tem —o que o torna estranhamente poderoso.
Terceira: se comédia é “punching”, ou seja, se é equivalente a uma agressão, o fato de as pessoas terem poder não torna uma piada legítima. Continua a ser imoral agredir alguém, por mais poderoso que seja. Até porque nenhum de nós foi nomeado juiz e carrasco. Ninguém nos mandatou para decidirmos vereditos e aplicarmos penas.
Quarta: quando o rei é alguém de que nós gostamos, ou que elegemos, ou que na nossa opinião está ao serviço do Bem com B grande, ao lado do que é correto, e luta pelos desfavorecidos, qualquer piada sobre ele atinge indiretamente os desfavorecidos. Logo, piadas sobre o rei não são “punching up”. Pelo contrário, são “punching down”. É uma lógica muito fácil de perverter.
O melhor é continuar a rir sem juízo. Talvez seja bom lembrar que o riso é uma reação espontânea e involuntária. Quem pretender submetê-lo a ditames morais devia trabalhar, ao mesmo tempo, numa ética dos espirros, ou dos soluços. Boa sorte.
*Publicado na Folha de S.Paulo