de Fernando Muniz
Ele procura ler todos os livros corretos, adotar atitudes sadias, seguir os ensinamentos de Sassafrás e se afastar dos costumes da sua família. Aprendeu a dançar, para ter o que fazer nos bailes do curso de advocacia e, com isso, evitar o vexame de ficar sozinho no meio do salão ou, pior, ter que conversar para além do trivial com os colegas. Tática que deu certo, afinal é alto, não é feio, tem pele clara, cabelo escuro e um ar melancólico.
Afunda no mundo novo trazido com o Despertar de Sassafrás e sua promessa de uma Nova Ordem, mesmo à custa de tantas perdas, de tanta amargura e sofrimento, cujos heróis e seus feitos são declamados pelos professores de Educação Moral e Cívica, sempre atentos ao que a juventude pensa, diz e faz. “As dores de hoje constroem o amanhã da Nação”, é o mote entoado pelos professores e repetido à exaustão.
Mas as promessas da Nova Ordem não afastam o vazio que, por vezes, o assalta. Fragmentos da infância e da vida em família, memórias de lugares e pessoas vêm à mente sem serem procuradas, o que o incomoda. “Como parar com isso?!” Na falta de orientação sobre o que fazer, afinal, caso fale com alguém a respeito é capaz de ser denunciado às Forças de Segurança, ele segue a vida, mergulhado na nova vida após o orfanato.
Em uma noite, ao convidar uma garota para sua casa, quase desmaiou ao notar que esquecera de esconder uma caixa de música, da sua mãe, única relíquia que conseguira manter consigo. E se a garota quisesse saber o que era aquilo? Por sorte a noite estava mais escura que o normal, ela não estava ali em uma investigação e, pela janela, nunca entra muita luz. Sumiu com a caixa por precaução, mas nas semanas seguintes a imagem dos pais na praia, com ele e os irmãos voltou com força em seus sonhos. Onde estarão seus irmãos, por sinal? Às vezes tem vontade de ir atrás deles; mas logo desiste. Nada que encontrar, seja notícia boa ou ruim, poderá ajudá-lo hoje em dia.
O comportamento exemplar e notas impecáveis, colocando-o nas listas de alunos de destaque, despertam inveja e, por vezes, desconfiança entre os colegas. Por que tanto afinco? De onde vem tanta energia? Afinal todos sairão empregados pelo governo e receberão o mesmo salário; mas isso não passa de maledicência dos que não conseguem contribuir para a grande marcha da Nação. Seu sucesso acadêmico, a facilidade com que conversa com todos na turma e a habilidade com as garotas o faz ser recrutado como informante; tarefa suja, porém muito apreciada pelos órgãos de controle. “Vigilância é a chave para mantermos a harmonia e a paz”, diz o oficial recrutador, um cão policial, nos poucos contatos pessoais entre eles.
E assim os dias seguem, como se ele, ao viajar por uma estrada cheia de curvas, evitasse buracos e trajetos mais perigosos, de modo suave, discreto e de acordo com as normas, como deve ser alguém que aprende a aplicar as leis e promover a Justiça em prol da Nação; a vida de bajulador astuto, pronto a cumprir os comandos do seu dono, tal qual o oficial que o recrutou.
Forja uma nova identidade, com base nas respostas aos incontáveis questionários, de toda sorte de autoridade. Ele próprio passa a acreditar naquelas respostas, que, para ele, deixam de ser mentiras a partir do momento em que sustentam novas perguntas, respondidas com base em tudo o que havia sido dito antes, a ponto de a nova versão da sua vida penetrar em sua alma – embora os fragmentos do passado continuem a assombrá-lo durante a noite.
O medo de falar algo fora de controle durante o sono, ou de cair em contradição com a imagem que construiu de si ou de desdizer alguma de suas respostas aos incontáveis questionários o afasta de relações estáveis, de namoros ou, absurdo, de um casamento. Essa insistência em não se envolver nem chega a ser percebida pelos colegas de turma; muitos ali também não se sentem à vontade com o passado.
Mas a certeza de que pode um dia, quem sabe, tornar-se um cidadão comum e valioso para a Nação o enche de esperança, embora essa palavra, que aprendera com os pais, esteja banida dos dicionários. Só Sassafrás é o futuro, só Sassafrás traz redenção e seus pais não existem mais para ele. Apesar da caixa de música.
Só que garota nenhuma quis mais dançar com ele, ou o oficial de inteligência o procurou, assim que os boatos começaram a voar pelos corredores da escola. De um dia para outro o seu figurino escorre para o esgoto, feito tinta dissolvida pela água.
“Filho de fuzilados? Quem diria! Isso explica muita coisa”.