6:20E se deitássemos o Brasil no divã?

por Vera Iaconelli

Freud quis saber qual nossa participação no sofrimento do qual nos queixamos

Freud escutou Dora (Ida Bauer), uma jovem de 18 anos com sintomas histéricos, que se queixava ao pai das investidas de um homem mais velho. O pai fazia vista grossa, pois tinha um caso com a mulher do dito cujo.

O quatrilho formado pelo pai, pela mãe, pela amante do pai e pelo tiozão do pavê, que a assediava, a enredou no auge de seus questionamentos adolescentes sobre o amor, o sexo e sobre ser mulher. Coube à ela produzir os sintomas que permitiram que fosse escutada.

A genialidade de Freud aparece na forma como ele busca implicar Dora em seu próprio sofrimento. Pai cínico, mãe omissa, amante resignada e marido canalha usavam claramente a jovem em seu enredo amoroso mas, ainda assim, era fundamental que ela pudesse assumir qual parte lhe cabia nesse latifúndio. O que capturava Dora nesse jogo erótico e com o que ela se identificava ao permanecer nele? A chave para tirar o paciente do vitimismo, sem negligenciar o enredo do qual faz parte, é ajudá-lo a reconhecer para si mesmo o que ele fez com os limões que a vida lhe deu.

Rios de tinta foram derramados na discussão desse caso considerado fundamental nos estudos sobre histeria (dica: acaba de sair uma edição caprichadíssima dos cincos casos publicados por Freud: “Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica”, pela Editora Autêntica).

Mas, e se o paciente fosse o Brasil, saindo do lugar de bebezão deitado em berço esplêndido em direção ao divã? Imagino que chegaria ao consultório contando as infindáveis violências e injustiças que sofreu e sofre, capazes de fazer lacrimejar o analista mais experiente. Mas se fosse experiente mesmo, o analista deveria, como precondição para começar uma análise, implicar o Brasil em sua própria queixa. Fazê-lo reconhecer que o sintoma da qual se queixa foi construído, paradoxalmente, para esconder, mas também para denunciar, sua verdade.

O Brasil contaria a história de sua família, na qual o patriarca branco violenta a mulher indígena, mata seus parentes, para depois escravizar pessoas negras a quem violenta sucessivamente. Contaria da chegada de outros brancos, que mesmo não participando desse início, continuaram a se beneficiar dele e a reiterá-lo infinitamente. É uma história triste, que o paciente jura que é passado e que não tem nenhuma relação com a desgraceira da qual se queixa: violência, injustiça social, racismo, misoginia. Seja branco, negro ou indígena, o Brasil não quer saber como se formou sua família, porque os rastros dessa violência não estão longe, mas na mesa de jantar, à sua frente, hoje.

Ver-se implicado na manutenção do horror que se imputa ao passado é doloridíssimo, por isso o desejo de ser curado do sintoma vem com o pedido mágico de não ter que mudar nada. Mas se engana quem pensa que dá pra fazer esse arranjo com o sintoma e sair ganhando. O analista não tem como compactuar com essa fantasia, porque não há cura sem o confronto com a verdade. Assim como não há cura sem algum ganho de liberdade. O sintoma deve ser tratado, mas sua mensagem não pode ser apagada, sob pena de repeti-lo eternamente com outras roupagens.

Domingo o Brasil vai enfrentar seu sintoma-Bolsonaro e nada poderá deter a esperança e alegria em fazê-lo. Mas não podemos ignorar que ele é apenas o retrato das mazelas que insistimos em não encarar e que se renovam, como dizia Lacan, com nossa paixão pela ignorância.

(Em tempo: leve uma colinha decente para votar em senador, deputado federal e estadual. São eles que decidem os rumos desse país.)

*Publicado na Folha de S.Paulo

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Uma ideia sobre “E se deitássemos o Brasil no divã?

  1. Eleanor

    “ele é apenas o retrato das mazelas que insistimos em não encarar e que se renovam, como dizia Lacan, com nossa paixão pela ignorância”.
    Esse trecho resume primorosamente o sentimento que alguns nutrem por um certo ex-presidiário!

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