por Luís Francisco Carvalho Filho
Na guerra santa, Bolsonaro é comprador de votos
Deus e o Diabo estão sempre na ordem do dia.
Jovem muçulmano desfere facadas em Salman Rushdie, 75, escritor de “Os Versos Satânicos”, em Nova York, três décadas depois da publicação do livro, considerado uma blasfêmia, e de ser condenado à morte pelo aiatolá Khomeini, fundador da República Islâmica do Irã.
Culto evangélico em Belo Horizonte: a primeira-dama Michelle fala para os fiéis que o Planalto era “consagrado a demônios” e que hoje está “consagrado ao senhor Jesus”. Trata o marido, Jair Messias Bolsonaro, autor do milagre, como “rei que governa essa nação”. Não se intimida: “Podem me chamar de fanática”, de “louca”.
Marcelo Freixo, candidato a governador do Rio de Janeiro pelo PSB, não apoia mais a legalização da maconha. De joelhos, inicia a campanha eleitoral orando e pedindo proteção a Deus.
A lição que fica da resposta do candidato Fernando Henrique a prefeito de São Paulo, em 1985, à pergunta do jornalista Boris Casoy (“O senhor acredita em Deus?”), é que, em eleições, hesitar não é bom. Para vencer na política é necessário lidar com Deus.
Testamentos religiosos, escritos e orais, podem ser vistos como fontes legítimas de veiculação do que hoje se chama fake news. Da abertura do mar Vermelho à multiplicação dos peixes, do exorcismo à imortalidade, da água benta ao banho de pipoca, as passagens e os rituais que os sustentam não encontram explicação na ciência.
Deus provoca ira e massacres, mas religiões também reduzem a violência. O ateísmo na China é instrumento de opressão. As fivelas dos uniformes nazistas tinham a inscrição “Gott mit uns” (Deus está conosco).
Elis Regina cantava “Cartomante”, de Ivan Lins e Vitor Martins, “Deus está conosco até o pescoço”. A Folha inaugura o podcast de entrevistas “Deus te ouça“.
O atual governo do Irã nega participação no cruel atentado ao escritor e declara: “Não consideramos ninguém além de Salman Rushdie e seus apoiadores dignos de culpa e até de condenação”. A culpa é da vítima.
A reação do papa Francisco ao atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo, em 2015, que deixou 12 mortos em Paris, é mais sutil mas também revela intolerância estrutural: “Não se pode insultar a fé dos outros”. A culpa é da vítima, da sátira. É como se a saia curta da mulher fosse determinante no julgamento do estuprador.
Uma das estratégias do Vaticano para fortalecer a fé católica é fabricar e normalizar santos. Tão rigoroso em relação a sacerdotes que cometem abuso sexual em nome de Deus, papa Francisco é liberal na arte de canonizar. Proclamou mais de 900 santos, número assombroso diante da existência de outros mil na história da Igreja.
Os processos de beatificação da princesa Isabel e do arcebispo de esquerda Helder Câmara já estão em curso. A meta é aproximar as santidades dos fiéis.
Se a missão de Bolsonaro é missão de Deus, para vencer a guerra do bem contra o mal, aclamada pela primeira-dama, que de boba não tem nada, o governante tem autorização divina para se apropriar do estado brasileiro. Os meios de abuso do poder político, econômico, administrativo e religioso contemporâneos brilham como nunca.
O governo quer harmonia entre charlatanismo e Receita Federal e amplia a isenção tributária dos pastores. Pura negociata, como o orçamento secreto. Golpista, estúpido, inepto, o presidente da República é (pelo menos no sentido figurado) comprador de votos. Em nome de Deus.
*Publicado na Folha de S.Paulo
“Golpista, estúpido, inepto, o presidente da República é (pelo menos no sentido figurado) comprador de votos. Em nome de Deus.” E faltou observar, compra com o meu, o seu, o nosso suado dinheirinho!