por Ana Clara Costa, na revista piauí
Como a emissora tornou-se o braço mais estridente do bolsonarismo
Soprava uma leve brisa noturna no Rio de Janeiro quando Tucker Carlson, a estrela mais reluzente da televisão a cabo dos Estados Unidos, deixou seu apartamento no hotel Fasano, no Arpoador, em direção ao aeroporto. Naquela noite de junho, voou para Brasília onde, no dia seguinte, entrevistaria pela primeira vez o presidente Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto. Carlson aceitou o convite articulado pelo assessor presidencial Filipe Martins, pupilo do falecido Olavo de Carvalho e fã de Donald Trump e de seu estrategista de campanha, Steve Bannon. Na quarta-feira, 29 de junho de 2022, dia da entrevista, o assessor estava radiante. O presidente estava ansioso. E o jornalista estava cansado. Durante a viagem, continuara apresentando o Tucker Carlson Tonight, seu programa diário na Fox News, a partir de um microestúdio montado no hotel, tendo a Praia de Ipanema como cenário.
Em mais de uma hora de entrevista, da qual 29 minutos foram ao ar, Bolsonaro sentiu-se ao lado de um aliado. Criticou a obrigatoriedade da vacina, minimizou o racismo no Brasil, denunciou que as pesquisas eleitorais são manipuladas. Carlson, cujo programa, nas palavras do New York Times, “talvez seja o mais racista da história da tevê a cabo” dos Estados Unidos, gostou do que ouviu e perguntou por que a Fox News, onde ele exerce uma enorme influência na radicalização do conservadorismo norte-americano, não estava instalada no Brasil para atender aos telespectadores bolsonaristas. “A CNN está aqui”, disse. “O senhor teve mais de 50 milhões de votos nas eleições. A CNN é um ator político aqui, assim como a Globo. Mas não há canal de tevê para os seus eleitores. Por quê?”
Bolsonaro começou adulando o apresentador. “Se eu pudesse lançar um apelo a você, eu poderia apenas dizer que você seria muito bem-vindo. Você seria um excelente contraponto aos outros meios de comunicação.” Em seguida, disse que “há muito poucos veículos sem viés no Brasil. Então precisamos de mais”, e fez uma recomendação: “Há um programa, no canal Jovem Pan, chamado Os Pingos nos Is, e eles são excelentes. Eles realmente mostram as coisas boas que acontecem no país.” Tucker Carlson, cujo programa tem a maior audiência da tevê a cabo norte-americana, ouviu o elogio sem esboçar qualquer reação.
Os Pingos nos Is também é um sucesso. Criado em 2014 sob o comando do jornalista Reinaldo Azevedo, que apresentou a atração durante três anos, é um programa transmitido ao mesmo tempo pela rádio Jovem Pan, dona da maior audiência no segmento de notícias em São Paulo, pela tevê a cabo Jovem Pan, hoje o segundo canal de notícias mais popular na tevê paga, e pelo seu canal no YouTube, onde tem mais de 100 milhões de visualizações mensais. É o único programa de debate político na lista dos mais vistos que não é exibido pela GloboNews, a maior tevê de notícias a cabo do país. É ancorado pelo jornalista Vitor Brown, com comentários de uma ex-jogadora de vôlei, Ana Paula Henkel, e outros três jornalistas – José Maria Trindade, Guilherme Fiuza e a estrela do programa, Augusto Nunes. Não há contraditório. Todos os comentaristas pensam a mesma coisa.
A pedido da piauí, a Novelo Data, uma consultoria de análise de dados, fez uma radiografia de Os Pingos nos Is. Examinou 1 080 episódios, num total de 1 994 horas de programação. O material foi ao ar entre 1 de janeiro de 2019, data em que Bolsonaro tomou posse, e 30 de junho passado, quando completou três anos e meio de mandato. Nesse período d e 42 meses, Os Pingos nos Is cresceu muito em audiência. Sextuplicou as visualizações no YouTube e triplicou o número de inscritos. Mais do que isso, fez uma trajetória exemplar no processo de radicalização política, que começou com um antipetismo virulento, como demonstrou a reportagem A nova sinfonia paulistana, na piauí_106, julho de 2015, e terminou abraçando a extrema direita bolsonarista.
O estudo realizado pela Novelo Data mostra que, no começo do governo, Os Pingos nos Is era um programa moderadamente favorável a Bolsonaro. Às vezes, até criticava o governo ou o governante. Em outubro de 2019, por exemplo, ao comentar um tuíte do presidente associando o Supremo Tribunal Federal (STF) a uma imagem de hienas, Augusto Nunes afirmou que se tratava de “molecagem” e “brincadeira perigosa”, e alertou que “não se brinca com esse tipo de declaração”. A essa altura, a Corte era bastante mencionada no programa, mas não ocupava o centro da pauta. Fora citada 2 532 vezes ao longo de 343 episódios até a metade de 2020. Também houve críticas amenas à demissão de ministros e às suspeitas de interferência do presidente na Polícia Federal.
Em 2020, com a chegada da pandemia e a radicalização do discurso de Bolsonaro contra as medidas sanitárias, o tom começou a subir nos programas da Jovem Pan – até que chegou o dia 24 de abril. Nessa data, o ex-juiz Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça, acusando Bolsonaro de interferir na Polícia Federal para proteger a família. O programa então entrou em curto-circuito. “O governo que assumiu em 1º de janeiro de 2019, sob o olhar esperançoso de milhões de brasileiros que apostam pela vitória no combate contra a corrupção, esse governo terminou hoje”, decretou Nunes. Era um sinal de que o programa tomaria um rumo definitivamente crítico ao governo.
Aconteceu o contrário. “Quando o Moro saiu, tínhamos a certeza de que o governo tinha acabado”, diz um profissional que integra a produção da emissora e falou à piauí sob condição de anonimato. Naquela altura, Tutinha teve a mesma certeza e chegou a decretar o fim do apoio ao bolsonarismo, anunciando que o novo tom seria dado pelo jornalista José Maria Trindade em seu comentário em Os Pingos nos Is. Mas antes que a ordem fosse dada, o empresário foi bombardeado por informações de que a audiência não havia desembarcado. “Nos comentários, víamos que a audiência seguia com o Bolsonaro, não com o Moro,” relatou o funcionário, que compilava as críticas e xingamentos que se amontoavam no canal do programa no YouTube. Outra observação sensibilizou o bolso de Tutinha: se a imprensa estava majoritariamente contra o presidente naquele momento, quem atenderia a audiência que ainda era favorável a ele? Assim, na medida em que foi constatando que a audiência abandonara Moro e mandara às favas seus pruridos anticorrupção, continuando fiel ao presidente, Os Pingos nos Is mergulhou de vez no bolsonarismo – e o fez com uma voracidade ideológica poucas vezes vista na mídia brasileira.
O STF tornou-se o maior alvo do programa, sobretudo depois que Bolsonaro ampliou a frequência e a virulência dos ataques à Corte, a ponto de ameaçar o ministro Alexandre de Moraes e lançar o grito do “Acabou, porra!”. Quando ficou claro que o STF era – como é até hoje – o obstáculo mais sólido aos planos golpistas de Bolsonaro, Os Pingos nos Is assumiu a trincheira. Dessa época em diante, até o dia 30 de junho passado, a Corte ganhou perto de 5 mil menções, um crescimento de quase 100%, e apareceu em 486 episódios. O STF, que antes não devia ser desrespeitado, passou a ser visto como “casa da sogra”, “ameaça ao regime democrático” e “o mais feroz partido de oposição ao Bolsonaro”.
Em julho de 2021, quando o presidente fez uma live prometendo revelar provas de fraude nas urnas, Nunes disse que não esperava “nenhuma irregularidade documentada”, mas afirmou que era “fácil adulterar o voto com qualquer sistema” e que estava “intrigado com a resistência à tentativa de melhorar o sistema de votação” por parte do STF. “Não dá para entender por que eles são contra”, disse. “Isso é muito estranho. E tudo que é estranho precisa ser esclarecido.” Até então, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não era o centro da pauta do programa. Entre o início do mandato e a metade de 2020, teve apenas 244 menções em 124 episódios.
Com a proximidade de uma eleição presidencial em que Lula lidera em todas as pesquisas e todos os cenários, ficou claro que o ataque à integridade das urnas eletrônicas era o centro da estratégia golpista de Bolsonaro – e o programa virou sua câmara de eco. As menções ao TSE escalaram para quase 2 mil e apareceram em 279 episódios. O tribunal passou a ser tratado como “autoritário”, as urnas tornaram-se “questionáveis” e, em que pese Bolsonaro jamais ter apresentado um fiapo de prova contra a votação eletrônica, os comentaristas consideram que as fraudes são uma hipótese plausível.
O ministro Edson Fachin, o presidente do TSE que tem sido incansável na defesa da urna eletrônica, é descrito como “advogado do MST”, o que é falso. O ministro Luís Roberto Barroso, ex-presidente do TSE, é o “advogado do Battisti”, em referência ao período em que participou da defesa de Cesare Battisti, o ex-integrante de um grupo armado na Itália, condenado à prisão perpétua por terrorismo. Alexandre de Moraes, que comanda o inquérito que investiga as milícias digitais de Bolsonaro, é “um homem despreparado”, “um vilão” que adota “métodos mafiosos”.
Quem assistiu ao programa nesses três anos e meio pouco ouviu falar de assuntos como rachadinha, o esquema de corrupção da família Bolsonaro que veio a público em dezembro de 2018. Foram apenas 144 menções entre janeiro de 2019 e junho deste ano. O orçamento secreto, instrumento que o presidente criou para comprar apoio no Congresso e cuja existência foi denunciada pelo jornal O Estado de S. Paulo em maio do ano passado, apareceu apenas quarenta vezes. A inflação, que atingiu seu ponto mais alto desde o Plano Real e corrói os planos de reeleição de Bolsonaro, está entre os termos mais mencionados do programa. Foram 1 866 vezes, mas que ninguém se engane: a inflação que galvaniza a atenção do Pingos nos Is é a da Argentina, país mencionado mais de 2 mil vezes no programa. O presidente da Argentina, Alberto Fernández, é de esquerda e amigo de Lula.
É comum que o programa mude de assunto quando o tema principal é prejudicial à imagem de Bolsonaro, criando uma cortina de fumaça. A análise da Novelo Data mostra que, no dia da prisão de Fabrício Queiroz, o miliciano da rachadinha, o termo mais usado pelos comentaristas foi “STF”. No dia em que a inflação bateu recorde, o debate principal envolvia os termos “Bolsonaro”, “Lula” e “STF”. No dia da prisão de Milton Ribeiro, o ex-ministro da Educação suspeito de montar um balcão de negócios no Ministério da Educação, seu nome foi apenas o quarto termo mais mencionado no programa, enquanto “Bolsonaro”, “Lula” e “STF” dominaram o ranking de menções.
Embora os casos de corrupção tenham se multiplicado no governo – o mais recente revelou malas de dinheiro do orçamento secreto no Maranhão –, o tema foi perdendo incidência no programa a partir da segunda metade de 2020, depois da saída de Moro do governo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, em que pesem a inflação, o desemprego, os juros e as cinco ocasiões em que o governo furou o teto de gastos, também foi sumindo dos comentários. Em compensação, “liberdade” e “liberdade de expressão” assumem uma relevância que não tinham antes. As menções aumentaram 153%. A mudança acompanha o discurso de Bolsonaro, que foi gradualmente substituindo “corrupção” por “liberdade”.
Cada tema precisa de um líder que o represente. A “corrupção” era personificada por Moro, apresentado no programa Os Pingos nos Is como mestre planetário do combate à corrupção, em linha com o apoio dos lavajatistas a Bolsonaro. No lugar da “corrupção” e de Moro, entraram “liberdade” e Daniel Silveira (PTB-RJ), deputado federal de atuação apagada que, ao ser preso pelo STF por ameaçar os ministros do Supremo num vídeo publicado na internet, alçou-se ao estrelato da Jovem Pan e tornou-se um símbolo da “luta pela liberdade”. Em Os Pingos nos Is, foi mencionado 1 219 vezes em 185 episódios.
Na grade do programa também entram temas praticamente fora da agenda ou com repercussão mínima nos demais veículos de imprensa, sites ou redes sociais. O “poder moderador” é um bom exemplo. A expressão – que já apareceu em 73 episódios do programa – é usada para definir o papel que os bolsonaristas atribuem às Forças Armadas, o de moderar os conflitos entre os poderes civis. A tese não tem fundamento constitucional, como já declararam os ministros do STF, mas é assunto caro aos extremistas que pregam “intervenção militar com Bolsonaro”. Examinando-se as menções à tese do “poder moderador” no Pingos nos Is e como ela trafega nos canais da extrema direita, constata-se que o programa não é sempre pautado pelos bolsonaristas, mas também os pauta.
Até março passado, os novos vídeos defendendo o papel de árbitro das Forças Armadas tinham 411 mil visualizações. Em abril, quando Bolsonaro deu o indulto ao deputado Daniel Silveira, o símbolo da “luta pela liberdade”, entraram doze novos vídeos no YouTube sobre o assunto. Conseguiram reunir 2,1 milhões de visualizações – mas apenas dois deles, ambos feitos pela Jovem Pan, atraíram quase 2 milhões. Um trazia uma entrevista dada ao programa Jornal da Manhã pelo jurista Ives Gandra Martins Filho, defensor do intervencionismo militar. O outro era uma reprodução dos trechos da mesma entrevista no programa Os Pingos nos Is. Era tudo o que a bolha digital do bolsonarismo queria ver e ouvir.
Um estudo encomendado pelo TSE, ao qual a piauí teve acesso, reforça que o programa é o principal difusor das versões bolsonaristas nas redes. No relatório, Os Pingo nos Is é tratado como “mídia de reframe”, expressão que os especialistas usam para designar meios digitais que reenquadram narrativas por interesse político, sem compromisso com o rigor de uma apuração jornalística, mas mantêm a aparência de jornalismo. O programa, diz o estudo, é a principal mídia de reframe da extrema direita no YouTube, com uma audiência muito superior à do segundo lugar, a Folha Política. (A esquerda também tem mídias de reframe. No relatório, aparecem com essa classificação as tevês 247 e Afiada, uma costela do finado Conversa Afiada.)
Desde que se bolsonarizou, de meados de 2020 em diante, Os Pingos no Is cresceu. Seu auge aconteceu na primeira quinzena de setembro de 2021, quando o presidente convocou seguidores às ruas na preparação de um autogolpe e, do alto de um carro de som na Avenida Paulista, em São Paulo, disse que não cumpriria mais decisões do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Um dia depois, recuou, e escreveu uma carta ao ministro dizendo que suas palavras “decorreram do calor do momento”, mas, a essa altura, o canal do Pingos nos Is já tinha cumprido seu objetivo: capturara 90 mil novos inscritos no YouTube e seus vídeos alcançaram a espetacular marca de 35 milhões de visualizações em apenas uma semana. De todos os canais alinhados com o governo, Os Pingos nos Is só ganhou menos assinaturas no YouTube do que o canal de Gabriel Monteiro (PL-RJ), o vereador bolsonarista processado por assédio sexual.
Com desempenho tão positivo, Os Pingos nos Is tornou-se o carro-chefe do investimento mais ambicioso da Jovem Pan: virar uma emissora de televisão no sistema a cabo. O projeto, que custou 55 milhões de reais, transformou-se em realidade em outubro do ano passado. Desde então, a Jovem Pan tem programação de 24 horas na tevê a cabo, com programas de notícias, opinião, entretenimento e comentários esportivos. Os Pingos nos Is é o único, entre os programas políticos, que não tem contraditório – todos pensam a mesma coisa, todos defendem a pauta bolsonarista, todos aplaudem a direita radical.
Os demais programas trazem uma voz discordante para dar um colorido ao debate. No 3 em 1, como o próprio nome diz, três extremistas de direita (Rodrigo Constantino, Marco Antônio Costa e Jorge Serrão) duelam com o jornalista Fábio Piperno, o único que não reza pela cartilha de Bolsonaro. No Jornal da Manhã, os bolsonaristas Cristina Graeml e, até pouco tempo atrás, Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente, contracenavam com a jornalista Amanda Klein, que faz ponderações críticas ao presidente. No Morning Show, até recentemente havia um equilíbrio: Adrilles Jorge, aquele que fez uma saudação nazista ao vivo, e Zoe Martínez, ambos admiradores de Bolsonaro, enfrentavam Guga Noblat e Paula Carvalho, que faziam o contraponto. Pela paridade de vozes, o Morning Show era visto pela audiência como o “programa de esquerda”. No final de junho, Salles e Jorge deixaram a rádio para concorrer à Câmara dos Deputados.
Desde maio passado, o canal TV Jovem Pan News superou a audiência da CNN Brasil e assumiu o segundo lugar entre os canais de notícia, ficando atrás apenas da líder do segmento, a GloboNews, que pertence ao Grupo Globo. A TV Jovem Pan, segundo a medição da Kantar Ibope Media, teve 0.13 de audiência, contra 0.5 da GloboNews – cada ponto equivale a cerca de 280 mil domicílios com televisores ligados nas quinze maiores capitais do país.
Com sua entrada no mundo da tevê a cabo em 2021, a Jovem Pan tornou-se um caso único no cenário de mídia do Brasil porque transmite 100% de suas programações em múltiplas plataformas – no YouTube, na tevê, nas redes sociais e nas rádios AM e FM. É difícil avaliar a audiência em todas essas plataformas, já que cada uma usa diferentes métodos de medição e o consumidor de um canal pode ser o mesmo consumidor de outro canal, mas estima-se que o “universo Jovem Pan” atraia atualmente cerca de 50 milhões de pessoas, entre telespectadores e ouvintes, a cada mês. Com esse patrimônio digital, a Jovem Pan transformou-se, nos últimos quatro anos, no polo de desinformação mais poderoso do bolsonarismo.
Na noite de 20 de junho passado, o empresário paulistano Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, de 66 anos, conhecido como Tutinha, resolveu celebrar os 80 anos do grupo Jovem Pan em grande estilo. Afinal, a família Carvalho voltara a ter uma televisão em seu patrimônio, pela primeira vez em três décadas, desde que, afundada em dívidas, teve que vender a TV Record ao bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. Para festejar a boa audiência e tentar ampliar seu faturamento publicitário, organizou um evento para apenas sessenta casais e deu uma orientação expressa ao seu diretor de marketing, Marcelo Camargo: só convidar líderes de empresas anunciantes, de preferência os presidentes. Nada de diretores menores.
No Shopping Morumbi, Tutinha mandou alugar o salão que abrigava a experiência imersiva Beyond Van Gogh, na qual quarenta projetores cobriam tudo – chão, teto, paredes – com imagens em 3D dos quadros mais célebres do pintor holandês. Os convivas jantariam como que dentro das obras de Van Gogh. Foi um fracasso. Quase metade dos convidados não apareceu. Entre os presidentes de empresas anunciantes, José Domingos Alves, da varejista Lojas Cem, e Michel Gaspar, da recém-criada marca de cosméticos Ervik. A TecToy e a Honda Motor Company mandaram seus gerentes de marketing. O governador paulista, Rodrigo Garcia (PSDB), estava lá, mas o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), não. Tutinha ficou furioso. Marcelo Camargo, seu diretor de marketing, amanheceu demitido.
Apesar da plateia mixuruca, Tutinha não entregou os pontos, simulou contentamento e enalteceu o próprio trabalho. “Eu peguei a bucha só há oito anos e tenho conseguido fazer bonito”, disse, em entrevista ao repórter da Jovem Pan que cobria o evento para as plataformas do grupo. “Tanto que meu pai tem me abraçado e me dado parabéns.” Seu pai, Antônio Augusto Amaral de Carvalho, conhecido como Tuta, deixou oficialmente o comando da empresa aos 83 anos, em 2014, quando a saúde já não lhe permitia levantar-se da cama. Hoje, aos 91 anos, alterna períodos de lucidez com apagões e faz diálise diariamente no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. A superação da figura paterna tem sido o alfa e o ômega de Tutinha.
“Meu pai ficou doente e me convidou para ser o presidente da rádio”, contou Tutinha, em outro evento, realizado antes, em 2017. “Eu falei: meu Deus do céu! O homem só fez sucesso, fez televisão, montou a TV Record, criou os melhores programas de música, fez da Jovem Pan a maior rádio do Brasil. Fui para lá e quando eu peguei a rádio, eu falei: nossa, preciso achar alguma coisa nova!”, disse o empresário, num sotaque típico paulistano que terminou eternizado pelo personagem Dr. Pimpolho, uma sátira do humorista Felipe Xavier inspirada em Tutinha, que representa o arquétipo do chefe rico, grosseiro e explorador.
Tanto o pai quanto o filho decidiram não cursar faculdade para se dedicar à empresa da família, mas as diferenças – de gestão, de personalidade – entre ambos sempre ficaram patentes. De estilo paternal, Tuta gostava de sentar-se à mesa dos funcionários e dar longas orientações, ao mesmo tempo em que era rígido com horários e dedicação à rádio – “uma generosidade severa”, conta um dos jornalistas que conviveu com o patriarca. Pagava salários maiores, assinava a carteira e tinha seus protegidos – entre eles, José Carlos Pereira, chefe do jornalismo por mais de vinte anos e considerado um “filho adotivo” do patrão. Ao assumir em 2014, Tutinha, com sua cabeça empresarial e seu faro por dinheiro, escanteou o jornalista veterano e demitiu todos os medalhões mais bem remunerados. Eram outros tempos. Fez novas contratações, todas terceirizadas, com salários menores e nenhum direito trabalhista – prática que tem se disseminado entre veículos de imprensa.
“Tutinha estava sempre querendo mostrar para o pai que era capaz, que não era só um herdeiro”, afirma um diretor que deixou a Jovem Pan antes da guinada bolsonarista. Um comentarista que já não integra mais os quadros da empresa lembra que sua primeira conversa com Tutinha, logo depois de ser contratado, foi sobre “seu Tuta”, embora não houvesse entre eles intimidade para tratar de assuntos pessoais. “Tudo o que eu faço é pelo meu pai, e ele nem liga”, disse Tutinha, segundo a lembrança do comentarista. O filho estava magoado com a indiferença paterna quanto ao crescimento que ele vinha promovendo na empresa desde que assumira.
Na década de 1990, Tutinha transformara a Jovem Pan FM em febre entre os jovens, ao tocar na rádio as músicas que viravam hits nas casas noturnas e nas festas. As Sete Melhores da Jovem Pan embalavam as noites da moçada e se tornaram um negócio lucrativo, incluindo métodos heterodoxos. Tutinha foi o primeiro empresário do mercado musical a institucionalizar o chamado “jabá”, valor que as gravadoras pagavam aos radialistas para que executassem as músicas de seus artistas – e, com Tutinha, quem passou a cobrar o jabá foi a própria emissora. Tutinha evitava o termo. Preferia falar em “projeto de implantação de um produto no mercado”.
Quando a cantora colombiana Shakira, em início de carreira, estava planejando vir ao Brasil para lançar seu primeiro disco, a gravadora Sony cercou Tutinha, oferecendo o álbum e pedindo que selecionasse as músicas de sua preferência. Mas o empresário não se interessou. Pouco depois, ao passar pelo quarto de sua filha Daniela, ouviu-a cantarolando o hit Estoy Aquí. De imediato, pegou o CD que a Sony lhe oferecera, escolheu as músicas e fechou um acordo com a gravadora: ganharia 1 dólar por CD vendido. O álbum explodiu. Vendeu mais de 1 milhão de cópias só no Brasil. Quando Shakira finalmente chegou ao país, ficou hospedada com a mãe na casa de Tutinha, no Jardim América, em São Paulo.
O programa Pânico, criado para a rádio, é outro acerto de Tutinha, que conseguiu vendê-lo para a RedeTV!. Ficou oito anos em cartaz no canal, com suas boas passagens de irreverência e seus péssimos momentos de um sensacionalismo grotesco, como quando a apresentadora Sabrina Sato masturbou um porco ao vivo. Rendeu muito dinheiro. Pouco antes do final do contrato com a RedeTV!, Tutinha comprou uma townhouse, como são chamadas as casas geminadas, de quatro andares, em Nova York. Fica no Upper East Side, uma das áreas mais chiques de Manhattan. Com a valorização do imóvel, associada à desvalorização brutal do real, a residência de férias que saiu por menos de 10 milhões de reais hoje vale mais de 50 milhões de reais.
Quando Tutinha assumiu os negócios do pai, em junho de 2014, o setor radiofônico estava em declínio em meio à transformação digital que se aprofundava no mercado de mídia, mas ainda assim a Jovem Pan persistia e faturava na casa dos 60 milhões de reais – cinco anos antes, eram 45 milhões. Os custos, contudo, eram muito altos, e a família, com alguma frequência, tinha de aportar dinheiro para fechar as contas no fim do ano. Ao assumir, Tutinha decidiu dar-se um prazo de três anos para fazer o negócio decolar. “Se eu for mal em três anos, tchau. Nova York que me espere porque eu não fico aqui”, disse, em entrevista à própria Jovem Pan, no dia que em foi oficialmente anunciado como sucessor do pai.
Tutinha sempre quis fundar uma tevê, tal como fizera seu avô, Paulo Machado de Carvalho, que criou a TV Record, emissora que fez história ao promover os festivais de música dos anos 1960. Em entrevista à revista Playboy em 2006, quando tinha 50 anos, confessou seu sonho: “Eu fico animado porque o Roberto Marinho montou a Rede Globo com 60 anos. Eu sou uma pessoa ambiciosa.” Há oito anos, quando assumiu a Jovem Pan, não tinha capital para uma empreitada tão ousada, mas teve uma ideia durante uma viagem a Nova York na companhia de Roberto Araújo, diretor executivo do grupo. Os dois visitaram uma loja de eletrônicos. Em entrevista no ano passado, Tutinha relembrou: “Vi uma câmera robótica e falei: ‘Roberto, olha o tamanho dessa câmera! Será que cabe na mala?’ Ele respondeu: ‘Cabe, vamos pôr. Mas se a alfândega pegar, a gente se ferrou!’ Pusemos as câmeras nas malas, trouxemos para o Brasil, fui pego na alfândega, paguei – eu sempre pago. Aí coloquei no estúdio e começou a dar uma audiência forte. Falei: pô, por que não montar uma tevê digital?”
Roberto Araújo, em outra entrevista, complementou: “Essa nova fase começa mais ou menos oito anos atrás, quando o Tutinha resolve dar um choque no que era a Jovem Pan e levar para um outro patamar, fazendo um jornalismo mais opinativo, porque naquela época foi diagnosticado que, ao ir para o meio digital, as pessoas buscam compartilhar outros comentários, opiniões e formas de ver a notícia, e não o hard news pelo hard news.” A expressão em inglês significa, no jargão da imprensa, a notícia factual, sem opinião ou análise. Em 2014, portanto, Tutinha havia enxugado a empresa e instalado as primeiras câmeras nos estúdios de rádio. Faltava escalar o time que faria a audiência bombar.
Começou contratando o jornalista Reinaldo Azevedo, que mantinha um blog no site da revista Veja, em que comentava notícias e tornou-se um estridente porta-voz do antipetismo. Na Jovem Pan, Azevedo começou como comentarista do Jornal da Manhã e logo ganhou seu próprio programa, Os Pingos nos Is, cujo nome foi escolhido pela sua mulher. “Foi uma hecatombe”, relembra um diretor, que já não integra os quadros da empresa. “Deu muito certo ali porque foi na veia. Era exatamente o que as pessoas queriam consumir”, resumiu o ex-executivo, referindo-se ao viés de direita que passou a dominar os comentários na rádio.
Em seguida, Tutinha chamou o historiador Marco Antonio Villa, outro que trabalhava na Veja. Comentando noticiário no Jornal da Manhã, Villa chegava cedo, antes das seis da manhã, desfilava pela redação no 24º andar do edifício da rádio e se posicionava diante da janela de onde se avistava a ciclofaixa da Avenida Paulista, instalada na gestão de Fernando Haddad (PT-SP) como prefeito. “Ele olhava para a ciclofaixa e falava sozinho, reclamando e chamando Haddad de ‘Jaiminho’”, conta um repórter que presenciava a cena matinal. Jaiminho era um personagem do humorístico mexicano Chaves, exibido pelo SBT, que tinha uma bicicleta mas não a usava. No programa, Villa tornou-se uma estrela da direita hidrófoba. “O Villa é louco de pedra. E taí. Ele é um sucesso. Virou artista de novela da Globo. Não pode mais sair na rua”, festejou Tutinha, num evento também em 2017, referindo-se às filas que se formavam na porta da rádio para tietar Azevedo e Villa, as duas sensações da casa.
“Aí começou a virada da Jovem Pan. Era uma posição política muito arriscada. Várias vezes, em Brasília, eu fui pressionado”, contou Tutinha. Mas, em 2014, deu-se a grande frustração do empresário: Dilma Rousseff foi reeleita, ao contrário do que indicava o “datapovo” dos membros da Sociedade Harmonia de Tênis, o clube da elite paulistana que Tutinha frequenta. Na noite da vitória petista, Azevedo sugeriu entrevistar o tucano Aécio Neves, derrotado por uma margem estreita de 3 pontos percentuais. Fez os contatos e, vinte dias depois do segundo turno, o tucano estava na bancada do Pingos nos Is. Foi recebido na rádio como se tivesse sido o vitorioso na eleição. Tutinha chamou familiares e amigos para irem ao estúdio conhecer o tucano. Derramou-se em elogios a Aécio, detonou Dilma e o PT e, daquele dia em diante, encampou a tese do PSDB de que a eleição fora fraudada, mas nunca compreendeu muito bem como as urnas eletrônicas poderiam ter sido adulteradas.
Os estúdios da rádio tornaram-se então cadeira cativa de integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL) e do Vem Pra Rua, que tomariam a frente na mobilização pelo impeachment de Dilma. Kim Kataguiri, do MBL e hoje deputado federal pelo União-SP, era presença frequente na sala de Azevedo, onde trocavam ideias até a madrugada e depois esticavam no Café Creme, tradicional bar 24 horas próximo à redação. Nas manifestações, os repórteres da Jovem Pan ficavam nos carros de som do MBL e do Vem Pra Rua. Villa discursou num deles. “O Villa discursando na Paulista era surreal, mas o Tutinha achava isso fodido, achava que estava prestando um serviço ao país”, diz uma jornalista que testemunhou tudo e continua na rádio.
Embora orgulhoso dos rumos ideológicos da rádio, Tutinha interferia pouco no conteúdo. “Era mais diretor artístico do que diretor de jornalismo. Ele se preocupava com a cor da gravata, o cenário, esse tipo de coisa. E com os números, claro”, conta um ex-subordinado do empresário. Quando interferia, era sem sutileza. No processo de impeachment, quando o apresentador do Morning Show, Edgard Piccoli, criticou uma reportagem de capa da revista IstoÉ permeada de misoginia, na qual se dizia que Dilma estava em “surto” com “explosões nervosas”, Tutinha ligou para Piccoli quando terminou o programa. “Assim não vai dar. Por que você está falando isso? Sou amigo do dono da revista. Assim vou ter que te mandar embora!”, bradou. (Piccoli deixou a rádio quatro anos depois. Processa a empresa por assédio moral. O caso corre em segredo de Justiça no Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília.)
Certo de que descobrira o caminho para o sucesso, Tutinha continuou chamando outros profissionais para programas de opinião, sempre contando com o aval de Reinaldo Azevedo. Contratou os jornalistas Carlos Andreazza e Vera Magalhães, e o humorista Marcelo Madureira, ex-Casseta & Planeta. Os três integravam o 3 em 1, um programa de debates. Tutinha chamava o grupo de dream team (time dos sonhos). Depois, começou a se irritar com o fato de que não divergiam de forma enérgica, nem resvalando nas baixarias que fazem tanto sucesso nas redes sociais. Nessa época, voltou a recorrer à redação da Veja para fazer outra contratação: Augusto Nunes, que começou como comentarista do Morning Show.
E queria mais. Sua intenção era contratar Rodrigo Constantino, que chegou a ser colunista de economia da Veja, mas Azevedo não concordava com a escolha. “Sou um conservador informado, não um reacionário babaca”, disse ele, na época, para justificar o veto. Na opinião de Azevedo, havia outros “reacionários babacas” na lista de Tutinha, como o jornalista Felipe Moura Brasil e a futura deputada federal Joice Hasselmann, ambos também egressos da Veja. Azevedo chegou a dizer para Tutinha que se os três – Constantino, Moura Brasil e Hasselmann – fossem contratados pela Jovem Pan, ele deixaria a rádio.
As divergências acabaram levando à saída de Reinaldo Azevedo. Tutinha reclamava que o jornalista agia com “soberba” e passara a se achar “maior que a rádio”. Quando o assunto era a Operação Lava Jato, Azevedo fazia críticas aos exageros jurídicos do então juiz Sergio Moro, mas Tutinha considerava tudo um tremendo acerto. As coisas pioraram no dia em que Marcelo Carvalho, irmão de Tutinha e diretor comercial da rádio, pediu que Os Pingos nos Is anunciasse um debate que a rádio estava promovendo entre Jair Bolsonaro e Villa, mas Azevedo recusou. Em maio de 2017, a permanência do jornalista tornou-se inviável quando a Lava Jato interceptou-o em conversas privadas com Andrea Neves, a irmã de Aécio que acabara de ser presa pela Polícia Federal sob suspeita de pedir vantagens à JBS em nome do tucano. (Andrea Neves ficou um mês presa. Acabou absolvida da acusação em 2022.)
Com a saída de Azevedo, a porteira abriu-se para a chegada de Rodrigo Constantino, Moura Brasil e Joice Hasselmann, que se distribuíram entre toda a grade da programação. Tutinha dizia que estava transformando o Brasil “para melhor”. “Vamos ter coragem de mudar esse país é agora, senão não muda mais”, disse, na época. Na prática, era um sentimento mais comercial do que político. Diz um ex-diretor de jornalismo da Jovem Pan, que trabalhou diretamente com Tutinha: “É um cara de uma família conservadora e tradicional paulistana, que não tem fundamento nem profundidade para tratar de política, não lê muito sobre o assunto, não gosta de ler nada. Não consegue prestar atenção em nada por mais de alguns minutos. Mas tem um feeling impressionante para entender o gosto das pessoas.”
No processo de radicalização que levou a emissora a apoiar inclusive as teses golpistas de Bolsonaro, a Jovem Pan trocou de equipe. De todas as estrelas daqueles anos iniciais, ninguém mais está na rádio: Reinaldo Azevedo trabalha na BandNews FM, Marco Antonio Villa é pré-candidato a deputado federal pelo Cidadania, Felipe Moura Brasil está no portal UOL, Joice Hasselmann virou deputada federal bolsonarista, eleita pelo PSL-SP (depois rompeu com o bolsonarismo), e o humorista Marcelo Madureira trabalha na BandNews. Carlos Andreazza e Vera Magalhães estão hoje no jornal O Globo e na CBN. Magalhães também apresenta o Roda Viva, na TV Cultura.
A exceção é Rodrigo Constantino, que se mudou para os Estados Unidos, mas continua com fé no Brasil de Bolsonaro. Participa do 3 em 1, que vai ao ar diariamente à tarde – e fatura alto. Em fevereiro de 2020, no jantar em sua homenagem oferecido pelo empresário Flávio Rocha, acionista da Riachuelo e um dos melhores amigos de Tutinha, Constantino pegou o microfone, falou por uns quinze minutos e deu seu recado. Disse que precisava de apoio para lutar pelos ideais liberais que todos ali defendiam. Lutar contra o “marxismo cultural” era difícil porque todos os meios de comunicação estavam “impregnados”. Para que pudesse continuar “dentro da grande mídia lutando pelos nossos ideais”, ele precisava de ajuda.
Ali mesmo, os empresários passaram o chapéu e recolheram doações. Desde então, Constantino está na lista dos consultores remunerados do Instituto Liberal, mantido pelo empresário Salim Mattar, dono da Localiza e ex-secretário de Desestatização do governo Bolsonaro. A partir daí, redobrou sua missão de ser “uma arma dentro da grande mídia comunista”, na definição de Edgard Corona, dono das academias Smart Fit, um dos empresários bolsonaristas presentes no jantar. Hoje, além de participar do 3 em 1, Constantino pede patrocínio online. Oferece vários pacotes. O mais barato custa 17,50 reais e dá “acesso prioritário em mensagens enviadas e aos [seus] vídeos e lives”. O mais caro sai por 5 705 reais e dá “acesso direto ilimitado por telefone e direito a sugerir pautas”. Constantino tem hoje 376 “patronos”.
No dia 7 de abril de 2018, a audiência dos canais da Jovem Pan no YouTube explodiu. Mais de 3 milhões de pessoas, cifra impressionante, acompanharam a transmissão da prisão do ex-presidente Lula, que se entregou aos agentes da Polícia Federal na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do abc e foi levado de helicóptero até Curitiba, onde passou 580 dias detido. Tutinha estava radiante. Teve um rompante de generosidade. Deu um bônus de 500 reais a todos que haviam trabalhado na cobertura. Os Pingos nos Is, já então apresentado por Felipe Moura Brasil e com comentários de Augusto Nunes e José Maria Trindade, disparou e tornou-se o programa da rádio mais assistindo no YouTube, desbancando o Jornal da Manhã.
No período eleitoral, Os Pingos no Is não dava apoio escancarado a Bolsonaro, mas Tutinha fazia questão de alardear sua preferência. Ao perceber que as chances de o tucano Geraldo Alckmin chegar ao segundo turno eram nulas, Tutinha abandonou o PSDB e aderiu a Bolsonaro. À jornalista Denise Campos de Toledo, então comentarista de economia da rádio e hoje na TV Gazeta, pediu que votasse em Bolsonaro porque, caso contrário, a rádio seria fechada pelo PT. “Ele [Bolsonaro] é uma bosta, mas tem que votar. Você está louca? Haddad não dá. Com Paulo Guedes, o mercado gosta dele. Vai ser bom pra caramba!” Em suas redes sociais, um mês antes da eleição, escreveu: “Dica de investimento: compre dólar agora por 4,20 e vote em [João] Amoedo. Quando Haddad for eleito, venda por 9,48”, sugerindo, a um só tempo, que apenas Bolsonaro poderia derrotar o PT e, em caso de vitória petista, o dólar dispararia.
Um dia depois do primeiro turno, Tutinha fez um apelo a seus amigos do Facebook para que votassem em Bolsonaro, ao compartilhar uma postagem de autoria desconhecida sobre o PT. “É Bolsonaro ou ditadura petista”, escreveu, antes de explicar que um golpe comunista estava em curso – e tudo estava muito bem detalhado no site do partido. O texto citava páginas de um suposto programa de governo petista em que se falava em “estatizar a Rede Globo”, “anular as sentenças do mensalão”, “cassar o mandato de Jair Bolsonaro”, “dar o calote na dívida externa” e transformar o Brasil em “fiador” dos “países comunistas da América Latina”. Em 30 de outubro, com a eleição decidida, Tutinha inventou que o cantor Caetano Veloso prometera deixar o país em caso de vitória de Bolsonaro, e escreveu: “Já vai tarde.”
Com o triunfo da extrema direita e Moura Brasil no comando do Pingos nos Is, o programa aproximou-se um pouco mais do bolsonarismo. Aluno de Olavo de Carvalho, o ex-astrólogo que funcionou como guia ideológico do bolsonarismo até sua morte em 2021, Moura Brasil estabeleceu pontes com a família – o presidente e os filhos. Exibiu a primeira entrevista em vídeo concedida por Bolsonaro depois da facada em Juiz de Fora, a menos de um mês do primeiro turno. No dia da vitória no segundo turno, foi o único jornalista a transmitir diretamente de dentro da casa do futuro presidente, na Barra da Tijuca, no Rio.
Embora estivesse enfrentando as misérias de um divórcio litigioso de Flávia Eluf, com quem fora casado, Tutinha não tinha muitos motivos para reclamar no fim de 2018. Bolsonaro havia vencido a eleição, a audiência da Jovem Pan estava nas alturas e, em dezembro, o Google, o gigante da tecnologia, trouxe outra boa notícia: anunciou oficialmente que a Jovem Pan estava entre os primeiros veículos de comunicação do Brasil que receberiam financiamento da Google News Initiative, um projeto de apoio à imprensa. A empresa de Tutinha levou 300 mil dólares.
Logo ficaria ainda melhor.
Em março de 2019, o presidente executivo da Jovem Pan, Roberto Araújo, foi convidado pelo YouTube para fazer uma apresentação sobre o grupo na sede do Google, em Palo Alto, na Califórnia. Antes da viagem, Araújo e Tutinha fizeram uma descoberta que teria um impacto significativo no caixa da empresa. Em conversas com os executivos do Google, eles perceberam que o convite para ir a Palo Alto decorria do fato de que a Jovem Pan havia se transformado num caso mundial de sucesso para o YouTube. Com a exibição de conteúdo durante 21 horas por dia, a Jovem Pan havia se tornado a maior fonte de notícias no YouTube Brasil.
De imediato, Tutinha e Araújo entenderam que tinham mais poder de barganha do que imaginavam para negociar os anúncios publicitários em seus canais no YouTube. Conseguiram o direito de vender a publicidade em seus vídeos na plataforma. É uma grande vantagem, já que, para a maior parte dos canais, quem detém o monopólio da venda é o próprio Google. Era o começo de um relacionamento privilegiado com a gigante da tecnologia. Um dos benefícios é que canais da Jovem Pan jamais podem ser retirados do ar por ação do algoritmo, como acontece com a maioria dos produtores de conteúdo que violem as diretrizes do YouTube. Em vez do algoritmo, entra a ação humana. Primeiro, a área de trust and safety avisa a equipe encarregada da parceria, que, por sua vez, recorre a um vice-presidente do Google para decidir se é o caso de derrubar o canal. Grandes emissoras de tevê também usufruem o mesmo benefício, mas nenhuma delas desafia tanto as diretrizes do YouTube. Com esse privilégio, a Jovem Pan sofreu a punição uma única vez: o canal do programa Direto ao Ponto foi derrubado, mas por uma razão mais prosaica. Havia violado direitos autorais.
“O laboratório para a Jovem Pan virar tevê foi o YouTube, com uma ajuda muito grande das equipes de parcerias do YouTube”, diz uma das fontes. “Ouvia-se internamente que a Jovem Pan poderia fazer o que quisesse que o canal não cairia, que eles tinham tratamento especial. E tinham mesmo.” O privilégio abriu um campo de experimentação. Ciente de que seus canais não seriam derrubados nem desmonetizados, a Jovem Pan passou a testar diversos tipos de mensagem – incluindo discurso de ódio e desinformação, que são vetados pela plataforma. O tratamento especial chegou a gerar conflitos internos no YouTube entre os que defendiam a derrubada de canais da Jovem Pan e os que achavam que deviam ser mantidos.
A piauí perguntou ao YouTube sobre os critérios de derrubada de canais para parceiros como a Jovem Pan. A plataforma negou que a emissora esteja submetida a regras mais brandas. “Aplicamos nossas regras (que existem para proteger a comunidade contra problemas como conteúdo nocivo e assédio, entre outros) de forma consistente em toda a plataforma independentemente de quem seja o criador do conteúdo.” Ainda segundo a nota, “violações repetidas ou uma violação grave podem levar o canal a ser encerrado”. O YouTube disse ainda contar “com uma combinação de inteligência de máquina, revisores humanos e denúncias de usuários” para identificar os vídeos em desacordo com as regras.
Com a crescente radicalização do discurso político no Brasil, o YouTube começou a tirar do ar vídeos antigos que violassem suas diretrizes internas. Desde o início de 2020, canais de extrema direita que propagam desinformação já tiveram mais de quatrocentos vídeos derrubados – no caso da Jovem Pan, foram cerca de cinquenta. A queda, no entanto, tem ocorrido bem depois do dano causado. No dia 18 de julho passado, quando Bolsonaro recebeu o corpo diplomático em Brasília para mais uma vez dizer que as urnas eletrônicas são fraudadas, o YouTube finalmente tirou do ar a live do presidente de um ano atrás, na qual ele repete a afirmação infundada. Na época, a mesma live foi reproduzida no canal do Pingos nos Is sobre o título “LIVE BOMBA de Jair Bolsonaro”. O vídeo ficou no ar até o dia 22 de julho, quando foi finalmente retirado. Tinha 300 mil visualizações. Mas a íntegra de Os Pingos nos Is daquela data, que contém a live do presidente, continua no YouTube com mais de 1,3 milhão de visualizações.
Uma penalidade mais branda que a derrubada do canal são os chamados strikes, nome dado à retirada de um vídeo quando está no ar ou imediatamente depois de sua transmissão no YouTube. Ao final de três strikes, o canal pode ser proibido de subir novos vídeos por um período determinado. No caso de Os Pingos nos Is, um polo de desinformação sobre a vacina, a pandemia e a credibilidade das urnas, apenas um vídeo sofreu um strike – e porque violara direitos de imagem ao exibir um trecho do programa Roda Viva.
“A Jovem Pan se tornou um problema para o YouTube”, diz uma das fontes ligadas à empresa que conversou com a piauí. “É uma das dores de cabeça que temos no momento. Era muito interessante o jornalismo combativo que eles faziam lá atrás, com bons colunistas que acabaram pulando fora por causa da radicalização. Hoje é o oposto: não se dá destaque para a Jovem Pan nos eventos e eles não são mais chamados.” Embora os tempos sejam outros para o grupo no YouTube, suas receitas com a plataforma engordaram 50%, graças ao aumento de 32% em visualizações e 49% em horas assistidas, que levantaram cerca de 20 milhões de reais, ajudando o faturamento total do grupo a ultrapassar 100 milhões de reais em 2021.
Uma estratégia bem-sucedida foi a criação de “cortes” do Pingos nos Is: são vídeos curtos com as passagens mais polêmicas do programa que ganham títulos chamativos. “A gente começou a fazer testes para ver o que funcionava melhor com o algoritmo. E os ‘cortes’ deram muito certo em audiência”, diz uma fonte que participou da elaboração da estratégia que aumentou a receita sem aumentar os custos. Tutinha costuma dizer que um dia ainda ensinará a Globo a fazer tevê com baixo custo de produção. Sua operação é enxuta. Tem quinhentos funcionários (quase todos terceirizados), está focada em audiência em meios baratos (YouTube e redes sociais) e paga salários baixos. O assistente de produção do Pingos nos Is, a joia da coroa da emissora, ganha cerca de 2,5 mil reais, e não vai para a redação porque não há vale-
transporte. Nesse regime, a Jovem Pan lucrou 15,7 milhões de reais em 2021, 75% a mais do que no ano anterior.
Com o governo Bolsonaro, o sonho de Tutinha de ter um canal de televisão ficou mais viável. Em 2019, depois de uma audiência com o presidente em Brasília, o empresário saiu decidido a entrar no ramo da tevê aberta. Apesar de uma audiência digital relevante, o grosso do público da Jovem Pan ainda era formado por homens de classe AB, acima de 60 anos, um contingente mais conectado à tevê convencional do que a plataformas de vídeo como o YouTube. Por isso, Tutinha achava que tinha um público em potencial, mas faltava um canal: tentou o antigo canal da MTV, emissora que fez sucesso exibindo videoclipes musicais nos anos 1990.
Como o governo comanda as concessões de tevê aberta, Tutinha obteve o aval do ministro da Comunicação, Fábio Faria, em maio de 2021, para assumir a nova tevê, caso seus donos quisessem mesmo vendê-la. Apesar da situação juridicamente complicada do canal da MTV, as negociações caminhavam bem, cresciam as especulações de que logo a Jovem Pan viraria tevê, e Tutinha resolveu fazer um comunicado público. No dia 13 de junho, postou em sua conta no LinkedIn, a rede social de contatos profissionais, uma nota cuja íntegra vai a seguir na forma como foi originalmente escrita:
Em breve a Jovem Pan que tem uma historia de 77 anos vai virar TV, se tudo der certo entraremos com uma rede de 45 emissoras abertas+net+Sky+Digital+115 radios+rede +internet +rede social+ panflix e mais tudo que conseguir colocar. Um momento especial pra mim e pro meus irmãos que acreditaram no meu trabalho e do Marcelo meu irmano que esta a frente comigo dos negocios. Trazer de volta a TV a familia Carvalho que um dia foi dona da TV Record e um desejo de mts anos.
To muto feliz, trabalho como se fosse um adolecente, muita energia, muita gratidão, muita fe em Deus. Meus sonhos so estão começando e eles nao tem limite quando chegam no topo novos desafios aparecem e vou com toda força pra cima. Hoje uma equipe de 500 pessoas trabalham pra TV virar realidade, vamos errar, vamos aprender mas vamos dar certo, nem que eu coloque minha cama na Jovem Pan e more la mesmo.
Tenho recebido mensagens do Brasil inteiro, fans da JP que me dão muito orgulho. Minha meta não e so grana quero deixar um legado e ajudar o Brasil a virar um grande pais.
Espero vcs em breve assistindo a JP de qualquer lugar do Brasil e ate fora atraves do Panflix. Agradeço humildente ao meu Pai meu idolo todo meu esforço sempre foi mostrar que ele me ensinou bem e que suas licoes estao dentro do meu coracão, carater, descencia, honestidade, caridade, pensar no proximo, entender nossos ouvintes/espectadores e que ele tenham total confiança na marca Jovem Pan eu jamais vou trair meus ouvintes /telespectadores e por fim eu sou de radio e o radio eu jamais vou abandonar. Eu sou radialista.
Pra encerrar dizer a todos os meus irmaos radialistas que montem suas equipes, coloquem suas ideias em pratica, nao tenham medo de novos programas, novas experiencias, cameras nos estudios e facam muitos videos e todos dias olhem com atenção para o futuro ele esta mais rapido que nunca, nao deixem que ele os engula.
Deus nos ajude sempre. Muito orgulho de ser radialista. Obrigado Brasil que é o meu Pais e que por ele eu lutarei sempre. Amem.
Quem conseguiu decifrar o patoá ficou certo de que o jogo estava ganho. A confusão jurídica do canal, no entanto, agravou-se em agosto, quando a Justiça determinou em segunda instância a cassação da concessão – e Tutinha achou que o investimento seria arriscado demais. Em questão de dias, desistiu da tevê aberta e optou por negociar um canal na tevê paga – e, no dia 27 de outubro de 2021, fez a primeira transmissão da Jovem Pan no canal 576, na Sky e na Claro. Para ampliar a audiência, comprou também um sinal de satélite por meio do qual a tevê Jovem Pan pode ser transmitida para quem tem antena parabólica, como se fosse um canal aberto. O mecanismo não funciona bem nos centros urbanos, mas tem grande penetração nos grotões do país, onde há mais de 20 milhões de parabólicas em funcionamento.
“A tevê foi toda autofinanciada pela rádio, pela família. Um negócio comercial privado. Não teve ninguém que chegou com dinheiro”, diz o jornalista Humberto Candil, ex-diretor de redação da Jovem Pan, que, em razão de sua experiência na Band, fora contratado para fazer a transição da rádio para a tevê. “Foi um esforço financeiro enorme a compra e a importação de equipamentos, contratação de funcionários, seis estúdios em atividade e um em construção.” Candil deixou a Jovem Pan em fevereiro, mas é defensor do seu modelo. “Não é mais noticiário factual que a audiência quer. Ela quer análise e comentário com coragem. As pessoas não suportam mais aquela coisa de ficar em cima do muro”, diz.
O discurso radical não incomoda Candil, para quem o único limite que não pode ser ultrapassado é o da vida. “Você não pode ir para o ar e mandar matar alguém. Aí você vai ser demitido”, diz. O resto está liberado. “Muitas vezes os comentaristas falam coisas que não estão dentro da linha da Jovem Pan. Mas existe um respeito pela ideia. A Jovem Pan sempre teve os dois lados. Me diga um canal que tem uma Amanda Klein?” Candil refere-se ao troféu antibolsonarista da emissora: Amanda Klein faz parte do Jornal da Manhã e é a única jornalista do programa que se opõe ao governo. Tutinha, quando indagado sobre a parcialidade do seu grupo, recorre ao mesmo argumento. “Aqui todo mundo pode falar o que quer. A Amanda Klein não fala o que quer?” Tutinha hostiliza publicamente a jornalista. Chegou a replicar em suas redes sociais um vídeo em que o ex-ministro Ricardo Salles rebate Klein de modo grosseiro. No vídeo, sobrepostos à imagem, aparecem os seguintes dizeres: “para de falar bobagens amanda klein!”
Opresidente Bolsonaro tem dado duas grandes contribuições à Jovem Pan. A primeira é financeira, ao irrigar os cofres da emissora com verbas públicas por meio de publicidade. Em junho, quando entrou no ar a campanha do Auxílio Brasil e do programa habitacional Casa Verde e Amarela, a Jovem Pan teve 195 inserções do governo federal. Algumas, com mais de um minuto de duração, foram apresentadas por jornalistas da casa, sem qualquer aviso ao telespectador de que se tratava de uma propaganda. Os anúncios apareceram com frequência inédita. Só no dia 24 de junho, sexta-feira, foram catorze inserções que duraram ao todo dezoito minutos.
Naquela mesma sexta-feira, o governo não colocou um único anúncio na CNN Brasil, nem mesmo na líder do segmento, a GloboNews. No consolidado do mês de junho, fica patente como o governo privilegiou a Jovem Pan, em detrimento da concorrência. Na GloboNews, houve apenas 76 inserções de órgãos públicos (do governo, do Ministério da Cidadania, dos Correios, do Ministério da Saúde). Na CNN Brasil, foram 105 (do governo, dos Correios, do Ministério da Cidadania, do Ministério do Turismo e da Agência Nacional de Energia Elétrica). Mas, na Jovem Pan, foi um sucesso: 267 inserções (do próprio governo, do Ministério da Cidadania, dos Correios, do Banco da Amazônia).
É uma diferença grande em relação aos tempos dos governos petistas. Tutinha já disse que, quando começou sua guinada à direita, foi pressionado em Brasília. “O ministro virava para mim e falava: você é de direita! E eu retrucava: e você, de esquerda, e daí?” Certa vez, segundo duas testemunhas do encontro, o então ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Dilma, Edinho Silva, pediu que Tutinha moderasse nas críticas para ganhar publicidade dos Correios. Como a rádio recebera apenas 500 mil reais de publicidade do governo entre 2014 e 2015, Tutinha ouviu o tilintar das moedas. Chamou o historiador Marco Antonio Villa num canto e pediu que baixasse a bola. Villa não lhe deu ouvidos, Tutinha insistiu, mas não resolveu. Os Correios só fizeram anúncios pontuais na rádio até a chegada do atual governo, quando os cofres de fato se abriram.
A generosidade do governo Bolsonaro não se reproduz no mercado privado. Segundo um levantamento obtido pela piauí, que inclui órgãos públicos mas também empresas privadas, em maio a GloboNews teve 96 anunciantes, com 3 584 inserções publicitárias ao longo da programação. A CNN Brasil aparece em segundo lugar, com 43 anunciantes e 1 962 inserções. A Jovem Pan, embora tenha ultrapassado a audiência da CNN, só figura em terceiro lugar com apenas 25 anunciantes e 1 119 inserções. Boa parte das empresas que aparecem na tela da Jovem Pan é pouco conhecida – como a Homeopatia Waldemiro Pereira – ou abertamente ligada ao bolsonarismo, como a rede de restaurantes Coco Bambu e a Gocil, grupo de um ex-policial militar que reúne empresas do agronegócio à segurança.
Um ex-gestor da área comercial, que trabalhou muitos anos na empresa, relatou à piauí as dificuldades de captar clientes. “Quando ainda era só rádio, vendíamos os espaços no horário de futebol ou nos intervalos das faixas musicais. Mas na tevê não tem futebol nem música, então é mais difícil fugir da programação política”, diz ele. “No caso da tevê, a gente terminava argumentando que, no fim do dia, as marcas queriam vender e bolsonarista queria comprar. Éramos muito cobrados para vender Os Pingos nos Is. Mas quem vai querer anunciar naquilo?” Até programas de entretenimento foram contaminados pela política. “A gente vendia o Morning Show como entretenimento, mas eu te pergunto: é entretenimento o Adrilles gritando uma hora e meia sobre urna eletrônica?” Adrilles Jorge é um ex-BBB que aproveitou a fama de subcelebridade que ganhou na Globo para disparar teses conspiratórias e conservadoras.
Tutinha já chegou a encomendar um projeto comercial sobre a Amazônia, para tentar um patrocínio da Natura, marca de cosméticos. Mas esbarrou no fato de que a maioria dos comentaristas de sua grade despreza a preservação ambiental. “Empresas preocupadas com imagem não entram. Não vai ter anúncio de Unilever, Procter & Gamble, Roche, Nestlé, Natura, Magazine Luiza”, conta o ex-gestor da empresa. A diretora de mídia de uma grande agência de publicidade de São Paulo explicou que, embora sofresse grande pressão da Jovem Pan para comprar espaço publicitário para seus clientes, os riscos não compensavam a boa audiência. “Há um compliance mundial que o cliente tem de respeitar. Se o anúncio é veiculado em meio a brigas, discurso de ódio, racismo ou misoginia, a responsabilidade é nossa e vira um problema global para a empresa”, explica a diretora, que atende uma multinacional cobiçada pela Jovem Pan. Recentemente, ela fechou um pacote de anúncios de uma marca do setor de turismo com a CNN, embora a Jovem Pan a tivesse procurado com proposta semelhante.
A segunda grande contribuição de Bolsonaro é seu constante estímulo ao aumento da audiência. Faz elogios públicos ao Pingos nos Is, como no caso da entrevista ao jornalista norte-americano Tucker Carlson, da Fox News. Mandou que todos os aparelhos de tevê do Palácio do Planalto fiquem sintonizados no 576. No aniversário de 80 anos do grupo, enviou um vídeo de parabéns, dizendo tratar-se de “uma empresa que cada vez mais desponta na luta pela liberdade de expressão”. É comum que faça suas lives de quinta-feira com uma caneca do Pingos nos Is sobre a mesa. Saúda os comentaristas do programa no final de sua transmissão. Ao encerrar a live do dia 15 de julho, disparou: “Assistam aí o Augusto Nunes até umas oito horas. Eles pegam uma rebarba da live da gente. Comenta alguma coisa.” Depois, emendou: “Tem um jornalismo de excelente qualidade pela sua isenção. É um exemplo de jornalismo.”
A “rebarba” é uma mostra da simbiose entre as lives de Bolsonaro e Os Pingos nos Is. Sempre que o presidente abria sua transmissão às sete da noite, caía a audiência do programa da Jovem Pan, que começava uma hora antes. A produção entendeu que as pessoas estavam migrando de um para o outro, esvaziando o canal da emissora. No início de 2020, surgiu a solução: Os Pingos nos Is começou a retransmitir a live toda ao vivo, qualquer que fosse a sua duração, que nunca era de tempo fixo. No restante das 2 horas de programa, os comentaristas opinavam sobre os tópicos abordados por Bolsonaro. Com uma vantagem adicional: podiam ainda fazer perguntas a Bolsonaro e vice-versa. A partir de julho, em razão da lei eleitoral, a transmissão foi interrompida.
Nesse sistema que se retroalimenta, os assuntos se cruzam. Na semana em que o site The Intercept Brasil publicou a notícia de que uma juíza de Santa Catarina não autorizara que uma menina de 11 anos grávida de estupro fizesse um aborto, o diretor do Pingos nos Is, Clayton Ubinha, acionou Ana Paula Henkel, a ex-jogadora de vôlei, no grupo de WhatsApp do programa. Perguntou se ela, militante antiaborto, queria comentar o assunto. Henkel disse que não. Na mesma noite, por volta das 21 horas, Bolsonaro se manifestou sobre o tema no Twitter, apoiando a decisão da juíza. Pronto. Era a senha para que o assunto ganhasse a Jovem Pan. No dia seguinte, era só o que se falava na emissora – e a maioria dos comentaristas concordava que o aborto era ilegal porque o sexo fora consensual, ainda que não existisse a figura legal do “sexo consensual” com uma criança de 11 anos.
Ubinha, o diretor, também é responsável pelo contato direto com o gabinete presidencial para tratar de aspectos técnicos da live de Bolsonaro. Nessa função, acabou ficando próximo dos assessores do presidente. Quando Bolsonaro quer fazer algum comentário sobre notícias veiculadas na Jovem Pan, aciona o diretor. Em maio, quando se discutia no programa Opinião se Bolsonaro apoiaria a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) ou a deputada estadual Janaina Paschoal (PRTB-SP) para o Senado por São Paulo, o presidente mandou dizer a Ubinha que não apoiaria nenhuma das duas, mas o apresentador José Luiz Datena, da Band. O jornalista William Travassos interrompeu a programação para dar o recado de Bolsonaro ao vivo. Dias depois, Datena desistiu da candidatura.
Os Pingos nos Is até já mudou política pública ao vivo. No dia 14 de setembro de 2021, depois que o Ministério da Saúde autorizara a vacinação de adolescentes contra a Covid, Ana Paula Henkel citou um trecho do plano de vacinação em que dizia que a imunização era indicada apenas para jovens acima de 18 anos. Bolsonaro, que assistia ao programa, ligou para o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para cobrar explicações. Em seguida, mandou mensagem para Augusto Nunes avisando que só adolescentes com comorbidades seriam vacinados. Os outros, não. O texto foi lido pelo comentarista ao vivo. Pouco depois, Queiroga recuou e voltou a incluir todos os adolescentes. A vacinação, por causa da interferência do presidente, começou com uma semana de atraso.
Quando, no início da pandemia, Os Pingos nos Is decidiu mostrar a evolução da mortalidade do vírus destacando o número de “curados” em vez do de mortos, o gabinete presidencial adotou a ideia e ordenou que o Ministério da Saúde fizesse o mesmo. Quando uma reportagem do portal Metrópoles mostrou que o governo gastava mais de 15 milhões de reais com leite condensado, o programa fez um bloco inteiro para explicar a razão do desembolso, e a explicação passou a ser usada pelo próprio governo para prestar contas à militância. A ideia de descredibilizar a reportagem partiu de Ubinha, o autor do título que acompanhava o vídeo: “Oposição usou fatos distorcidos para atacar o presidente Bolsonaro.” Aos colegas, Ubinha costuma dizer que o Pingos é “fundamental” para “controlar a narrativa” do governo no YouTube, atuando como linha auxiliar do bolsonarismo. Quando a cantora Anitta divulgou seu apoio à candidatura de Lula, o vídeo que mais teve engajamento sobre o tema foi justamente o do programa, superando aqueles publicados pela imprensa e por apoiadores do PT. O título dado pela Jovem Pan era: “Após declarar apoio, Anitta pede que Lula libere as drogas no Brasil.”
Funcionário da emissora desde 2007, Ubinha faz um papel com o qual a maioria dos jornalistas da redação não concorda. Por isso, sempre que sai de férias é um martírio escalar alguém que aceite substituí-lo. Na redação, a equipe de comentaristas do programa é comumente chamada de “aquele bando de malucos”. Quem apoia a guinada bolsonarista internamente costuma se defender dizendo que, não fosse por isso, a empresa estaria fadada ao fracasso. “A Jovem Pan fez da defesa do Bolsonaro um negócio lucrativo”, diz um graduado funcionário, para quem a emissora – “pelos bons serviços que presta” – deveria até ganhar mais.
No processo de bolsonarização, a Jovem Pan comprou o pacote inteiro. O racismo não é um tema bem-vindo na programação. Não tem apresentadores negros. Quando, em 2019, o programa Morning Show repercutiu o episódio em que a empresária Donata Meirelles foi fotografada rodeada de mulheres negras trajadas de baianas, emulando o arquétipo da sinhá rodeada de mucamas, Tutinha se irritou. Um dos dois únicos repórteres negros da redação havia sido escalado para falar sobre o tema no programa. Enquanto ele falava, Tutinha fez uma rara aparição no estúdio. Sentou-se ao lado do repórter e gesticulou, ao longo de toda a fala, insinuando que o jovem estava louco ou dizendo loucuras. Tudo foi filmado, mas a Jovem Pan logo deletou o vídeo de sua conta no YouTube.
Na mesma época, Tutinha mandou tirar do ar o programa Eva, voltado para o público feminino, depois que um episódio tratou do tema “masturbação”. Em julho passado, no chocante episódio em que uma mulher grávida foi estuprada pelo anestesista Giovanni Quintella Bezerra durante o parto, a Jovem Pan exibiu as imagens sem tarja, expondo a identidade da vítima. Houve revolta nas redes sociais e um protesto na frente da emissora. Em uma nota, a empresa não se desculpou. Disse que as mesmas imagens haviam sido exibidas por outras redes. Entre as principais emissoras, nenhuma mostrou as imagens sem proteger a vítima.
Quem conhece Tutinha, no entanto, arrisca que seu bolsonarismo é de ocasião. Seu negócio é dinheiro. Apesar das verbas públicas, da audiência no YouTube e do lucro de 15,7 milhões, Tutinha acha que pode ganhar muito mais. Com as dificuldades de atrair anunciantes no mundo privado, o empresário trocou seu responsável pela área comercial em abril passado. Contratou José Carlos (Zeca) Vianna, um executivo de vendas sem experiência no mercado de mídia. Vianna foi quem deu a ordem para que a emissora divulgasse um editorial defendendo a urna eletrônica, o que chocou parte da audiência e dos próprios comentaristas. Deu a ordem porque, numa reunião com um grande banco privado, descobriu que o radicalismo da emissora a excluía dos requisitos para receber anúncios da instituição. Vianna também proibiu que os comentaristas do Pingos nos Is voltassem a pregar contra a vacina – o que nem sempre é cumprido pelo jornalista Guilherme Fiuza.
Em julho passado, em entrevista ao site Notícias da TV, o presidente executivo Roberto Araújo já afirmou que a Jovem Pan “não tem lado” e disse que Lula, se eleito, será “muito bem recebido”. Numa reunião entre comentaristas da rádio e a direção, ocorrida em 27 de julho, a produtora executiva Mariana Ferreira disse com todas as letras que o Pingos nos Is estava dando problemas e vetou todos os comentaristas de extrema direita de participarem das sabatinas eleitorais que serão promovidas pela rede. O único a não ser excluído é o debatedor Roberto Motta, considerado o menos radical da turma. Para Tutinha, a Jovem Pan é de “centro”. “Se o nosso público amanhã mudar de lado, eu vou mudar com ele. Mas eu faço meu jornalismo pro público que ouve a Jovem Pan, que vê a Jovem Pan e que entra nos canais digitais da Jovem Pan. Isso dá uma vantagem porque éramos praticamente eu e O Antagonista. Agora, O Antagonista mudou”, disse o empresário num vídeo publicado em março no YouTube, referindo-se ao fato de que o site O Antagonista se afastou do governo Bolsonaro desde a saída de Moro. “Não quer dizer que a gente é bolsonarista”, acrescentou Tutinha. “A gente não é nada. A gente é uma emissora que fala a verdade.”
A verdade da Jovem Pan já foi celebrada aos gritos no último 1º de maio, na comemoração do Dia do Trabalho. Em cima de um carro de som, diante de uma grande plateia de verde e amarelo na Avenida Paulista, a deputada Carla Zambelli, maestrina da claque bolsonarista, deu uma diretriz: “Vocês têm um desafio para fazer. Liguem as televisões de vocês, nas empresas de vocês, não em música, não na Globo, não no esporte, mas em informação de verdade. É assim que a gente vai conseguir vencer. Convencendo cada um.” Em seguida, entrou no ponto que interessava: “Quem elegeu o presidente Bolsonaro? A Jovem Pan? Quem aí gosta da Jovem Pan? Então é o seguinte, aqui um desafio pra vocês: põe no canal da Jovem Pan, porra!” Os manifestantes começaram a gritar em uníssono: “Jovem Pan, Jovem Pan, Jovem Pan!”
Willim Travassos, que naquele momento apresentava o JP Urgente, na Jovem Pan News, agradeceu ao vivo: “Em nome da família Jovem Pan, nós queríamos agradecer esse carinho do público que está com a gente agora. Muito obrigado pela audiência dos senhores.” A gentileza foi retribuída na convenção do PL, realizada no Maracanãzinho, que oficializou a candidatura de Bolsonaro à reeleição no final de julho passado. Uma faixa, com letras pintadas nas cores da bandeira nacional, informava: “Tamo junto – Capitão e Jovem Pan – Guilherme Fiuza, Zé Maria e Augusto Nunes.”
Esses textões sobre as tais cartas pela democracia são exemplos do distanciamento da “elite” pensante com o povo.
Fico com um post deste blog mesmo: estas cartas não fazem a menor diferença na Vila Fuck.
Os textões também não.
Correção do texto:
Desisti de continuar lendo na parte do ”orçamento secreto”. Vcs não sabem que o presidente VETOU e que normalmente não se veta o que se propõe. Concordam? Quanto a apresentadora Ana Paula Henkel, é uma ex jogadora de vôlei, sim. Mas, estudou, tem graduação, é comentarista política e ser apresentada apenas como ex jogadora de vôlei. Achei de pejorativo e preconceituoso. Acho que vcs têm que melhorar a qualidade das pesquisas e da realidade dos fatos.
Esse é o terceiro texto que envio. O propósito é melhorar sempre.
El título debería ser, ” pingos nos IS va en contra al golpe de la Suprema corte”.
La extrema izquierda brasileña intenta volver al poder en Brasil de la manera más sucia que los comunistas pueden usar, atracar las elecciones y engañar el pueblo.
Lula no ganó las elecciones, hubo fraudes, muchas fraudes y al final ustedes extremistas comunistas van podrir uno a uno en la cárcel por haberlo hecho.