8:15Agitação de junho de 2013, onde o Brasil se revelou, jaz em paz nove anos depois

por Mario Sergio Conti

Movimento que primeiro pedia ônibus mais baratos e comoveu o país acabou ficando como clichê de ovo da serpente

Junho veio e se foi sem uma mísera menção ao mais potente estouro popular da história nacional, o de 2013. Nove anos é um aniversário de pé quebrado, mas não gerou nem os clichês de sempre. Ao contrário de 1968, o ano insurgente terminou. Jaz na paz dos cemitérios.

É um silêncio interessado. A casta política tem horror ao mês em que cerca de cinco milhões de pessoas, numas 500 cidades, lhe impuseram uma derrota cabal. Sem líderes, um povo anárquico e briguento bateu de frente com o status quo e o obrigou a baixar o preço das passagens de ônibus.

O grande movimento de massas de 30 anos antes, o pelas diretas, foi enquadrado pelos vigários da oposição. Governadores, parlamentares e partidos colonizaram a campanha popular. Derrubar a ditadura e inaugurar um novo tempo? Necas de pitibiriba.

O Congresso sepultou as diretas e a oposição bachareleira se mancomunou com o generalato. Deixou o povo de brocha na mão e, de braço dado com torturadores, empalou o novo numa transição sem fim. O velho Tancredo se foi e veio o velhíssimo jaquetão de molde militar, Sarney.

Em 2013, o pavio foi aceso pelo Movimento Passe Livre, em São Paulo. Os trombones da política estavam afinados a ponto de, na primeira passeata, Haddad e Alckmin tocarem juntos “Trem das Onze”, em Paris. Articulavam ali um desses megaeventos que favorecem magnatas.

De lá veio a resposta oficial à demanda por transporte público com preço razoável: pau nos baderneiros. O pau de fato cantou, mas não intimidou. Cada vez mais aguerridos, protestos pipocaram pelo país. Queimaram pneus, atacaram vans da televisão, esbofetearam PMs.

Em Brasília, a gente irada subiu na cúpula do Congresso. A Assembleia Legislativa do Rio, valhacouto de lambanças, foi invadida pelos rebeldes. Saraivadas de bombas, balas de borracha e cacetadas feriram dezenas. Seis morreram.

Como a gente da pá virada não arredava pé, entrou areia na engrenagem política. Dilma se reuniu às pressas com Lula e João Santana, o delator depois condenado por lavagem de dinheiro na Lava Jato, e que agora lava a louça de Ciro Gomes.

Tiraram da cartola a Constituinte, mas sumiram com o coelho logo que a coisa acalmou. Apesar da baixa no preço dos ônibus, a calma demorou. O populacho ameaçou melar a Copa das Confederações, em protesto contra as pirâmides erguidas para abrigá-la —e para mimosear empreiteiros que molham a mão de candidatos.

No bafafá, a imprensa mudou de lado. Antes, defendia bordoadas em todos; depois, só nos sem gravata ou sem tailleur: os “vândalos”. Ensinou bons modos à malta, que é preciso recorrer aos canais competentes. Ordem, sempre. Progresso, no Dia de São Nunca.

Os tubarões da política concordaram, pois acham que vagalhões de ira popular são mesmo muito jecas. Serenada a procela, voltou à tona o voraz cardume de Kassabs, as carpas roliças que, de direita, centro ou esquerda, comem restos na mão da burguesia e mantêm o ecossistema da exploração.

Os clichês que 2013 legou vêm na politicologia. Grosso modo, são dois chavões: o do ovo da serpente e o das redes. O primeiro se inspira no filme de Bergman, cujo título ecoa uma fala de Brutus em “Julio César”: é melhor matar o mal na casca porque senão ele vira cobra.

Nessa linha, as jornadas de junho foram o ovo da extrema direita que a Lava Jato chocou, gerando a serpente Bolsonaro. Pela lógica, faltou pulso ao PT para acabar com a zorra na marra. Numa versão conspiratória, a CIA manipulou a galera para molestar o PT.

Fez-se uma ginástica estatística para provar que a classe média alta, ressentida com a perda de status —”os aeroportos viraram rodoviárias!”— enfiou o fantasma da corrupção em 2013. Teóricos da tese explicam que propinas a políticos são consequência, e não causa da desigualdade. Mas não esclarecem por que não se pode combater tanto uma como a outra.

O clichê das redes atribui um peso determinante à internet, já que as correntes digitais propagaram o sururu. Mas, ao redor de 2013, houve a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, os indignados na Espanha e várias outras explosões de insatisfação. Reduzi-las às redes sociais é abstrair motivos, situações e ritmos diversos.

Aprende-se mais sobre 2013 com a arte do que com o silêncio da política e bordões da academia. Em “Rainha Lira”, Roberto Schwarz põe em cena uma revolta. Oposição e situação, militantes e milicianos, pobres, ricos e remediados dizem quem são e o que querem. Parece o Brasil daquele junho.

*Publicado na Folha de S.Paulo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.