Como as pesquisas mostram que Lula ainda é o provável vencedor do pleito que acontecerá em outubro, arrisco fazer neste texto um exercício de futurologia e prever como o Brasil se comportará culturalmente, caso o comando retorne ao poderoso chefão.
Na verdade, o risco nem é tão grande. Sabemos o que a maioria dos artistas e intelectuais fará, se Lula for eleito pela terceira vez. Eles comemorarão como se não houvesse amanhã e gritarão que finalmente “a democracia e a civilização retornaram”. Para essa casta, Bolsonaro não passa de um “soluço fascista” e, depois do interregno que foi o seu desgoverno, um projeto de país será finalmente recuperado — sempre, é claro, com o patrocínio estatal.
Acredito, no entanto, que a realidade pode abreviar essas comemorações.
Como diz o italiano Enzo Traverso (entrevistado nesta edição de Crusoé), a vontade de mudar a realidade por meio de uma “educação do imaginário” fracassou e deixou em seu rastro uma certa “melancolia de esquerda“, que nada mais é do que a digestão mal feita das derrotas da esquerda no século XX. Gente acometida dessa melancolia reinou na cultura brasileira por muito tempo. Nos últimos dez ou quinze anos, contudo, dois fenômenos surgiram para confrontá-la. De um lado, aquilo que os politólogos chamam de “populismo de direita”, representado pelo americano Donald Trump, o húngaro Viktor Órban, a francesa Marine Le Pen ou o nosso Jair Bolsonaro. De outro, como broto inesperado de uma esquerda que sempre quis falar em nome de interesses universais, a “cultura woke”, que faz de traços identitários como gênero, raça e sexo a sua razão de ser. “Woke” é “desperto” em inglês. Esses ativistas acreditam que enxergam tudo que o “sistema” deseja esconder. Conseguem ser ainda mais arrogantes e nocivos do que seus antecessores, que pregavam o politicamente correto.
No Brasil, em particular, a cultura woke, inspirada nas obras de Frantz Fanon, Sueli Carvalho, Sílvio Almeida e Djamila Ribeiro, tomou de assalto a “educação do imaginário”. O resultado disso é que, se antes o PT parasitava o politicamente correto, agora a “cultura woke”, que se tornou a regra nas redações jornalísticas, nas universidades e no mercado editorial, encurrala o partido vetusto. Dois fatos recentes mostram como o diálogo entre a velha e a nova esquerdas culturais pode ser problemático.
O primeiro evento foi a publicação de um artigo do sociólogo Antonio Risério na Folha de S. Paulo, em janeiro deste ano. Ele criticava duramente o racismo estrutural (um dos conceitos favoritos dos identitários), que existiria não só entre negros e brancos, mas também entre os próprios negros, inclusive com toques de antissemitismo em alguns casos. As redes sociais explodiram de ódio organizado. Risério, um esquerdista que participou da administração de Gilberto Gil quando ele foi ministro de Cultura, foi linchado impiedosamente. Houve até um motim na redação da Folha, com um manifesto assinado por cerca de 140 jornalistas, condenando não só o texto, mas também a sua publicação, considerada imprópria por disseminar “ideias antidemocráticas”.
O segundo evento foi o recente lamento de Lula, dizendo que o mundo está “muito chato”, porque ninguém pode contar piadas politicamente incorretas. O mal-estar na esquerda e nos bastidores da campanha do PT foi generalizado. Mas, ao contrário do que aconteceu com Risério, fizeram vista grossa para Lula.
Lula está emparedado entre a cultura woke e a dos melancólicos de esquerda, que acreditavam na revolução e pregavam a igualdade, mas não deixavam de fazer piadas sobre gênero, raça, etnia ou forma corporal. Se tivesse que fazer uma previsão a respeito da cultura brasileira com o retorno do petista ao poder, seria esta: Lula tentará conciliar as duas vertentes da cultura de esquerda durante a campanha, mas, ao vencer, terá de ceder aos identitários. Com seu comportamento de seita intolerante, essa turma terá num governo petista o mesmo papel que a de Olavo de Carvalho teve por mais de dois anos no governo Bolsonaro. A discussão será regida por gente que usa “todes” no lugar de “todos”, e o cidadão brasileiro, além de não ter dinheiro para pagar o botijão de gás, ficará paranoico ao descobrir que é um racista estrutural desde o nascimento.