5:58Dez anos do massacre do Pinheirinho

por Mário Montanha Teixeira Filho

Há dez anos, um terreno gigantesco incrustado na Zona Sul de São José dos Campos, o município mais importante da região do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, abrigava em torno de duas mil casas. Uma população formada por quase oito mil pessoas vivia ali, na área de mais de um milhão de metros quadrados ocupada em 2004 por famílias de trabalhadores sem-teto. Com o esforço e a organização daquele grupo, o local se fez bairro, eliminando o vazio de um espaço urbano que estava abandonado desde a década de 1980.

Não faltavam motivos, em 2012, para que a ocupação, que recebeu o nome de Pinheirinho, fosse regularizada pelo poder público. O título de propriedade da gleba havia sido dado à Selecta Comércio e Indústria S.A., uma empresa que acumulou dívidas durante longos anos, sonegou impostos e teve falência decretada em 1989. Talvez porque o controlador do empreendimento fosse uma conhecida figura do setor financeiro, o especulador Naji Robert Nahas, protagonista de operações mercantis ilícitas que provocaram a quebra da bolsa de valores do Rio de Janeiro, em 2000, as coisas não aconteceram como o bom senso recomendaria.

Desde quando surgiu o Pinheirinho, Najas e seus prepostos fizeram esforço para recuperar a propriedade que estava registrada em seu nome. Nessa empreitada, acionaram a Justiça de São Paulo, numa sucessão de medidas judiciais que se arrastaram por quase uma década. Na maioria das vezes em que visitaram os fóruns e tribunais do Estado, seus pedidos foram referendados por circunspectos senhores de toga, ainda que os causídicos que movimentaram as ações tivessem cometido lapsos, pecadilhos procedimentais, como, por exemplo, a perda de prazos para a apresentação de recursos. Nada disso impediu que a massa falida da Selecta exibisse ao mundo, triunfante, uma liminar de reintegração de posse que o Judiciário lhe concedeu – Judiciário merecedor da sua confiança absoluta, diga-se –, e cujos efeitos ratificou sempre que foi necessário.

Acontece, porém, que, ao contrário do que imaginam os entusiastas da aplicação fria das normas que servem aos donos do dinheiro e do arquivamento daquelas que asseguram benefícios aos desvalidos, as decisões judiciais às vezes encontram obstáculos para que se tornem efetivas. Enquanto um emaranhado de interpretações, pareceres e decretos recheava os processos do Pinheirinho, exposto no linguajar macarrônico dos operadores das leis, a ocupação crescia e se consolidava. Em pouco tempo, o Pinheirinho virou bairro. Faltava regularizar essa condição. O primeiro passo seria a cobrança da dívida milionária acumulada pela Selecta. A partir daí, uma desapropriação resolveria o problema, com a entrega de títulos de propriedade a quem urbanizou, de acordo com as exigências de construção oficiais, um pedaço de terra que antes não cumpria nenhuma função social. Mas a Prefeitura de São José dos Campos não estava disposta a realizar essa tarefa.

Com os moradores do Pinheirinho organizados politicamente, a reintegração de posse ficou em suspenso por muitos anos. A ocupação ganhou simpatia de instituições de defesa de direitos humanos, nacionais e internacionais, e passou a intervir no cotidiano da cidade, com mobilizações a favor do direito à moradia, principalmente. Em 2011, porém, a cúpula do Tribunal de Justiça de São Paulo e a 6ª Vara Cível de São José dos Campos decidiram que estava na hora de acabar com o “problema”. O Pinheirinho deveria ser destruído, e o Judiciário seria o veículo institucional para que os interesses que cercavam essa sentença de morte fossem preservados.

No início de 2011, a liminar que a massa falida havia conseguido em 2004 foi restabelecida de ofício pela Vara Cível. Estava autorizado o emprego da força policial para desalojar os ocupantes, que resistiriam. Uma das alternativas encontradas pelos advogados do Pinheirinho foi buscar a transferência da causa para a Justiça Federal, onde encontrariam um ambiente menos hostil do que o proporcionado por juízes estaduais. Debates sobre competência tiveram início e se estenderam por meses. Houve, também, movimentações que indicavam que ninguém sairia do terreno pacificamente. O despejo vinha cercado da ameaça de um banho de sangue.

Na madrugada do dia 22 de janeiro de 2012, a situação jurídica do imóvel ainda não estava definida. Mesmo assim, mais de dois mil soldados atacaram o Pinheirinho, humilharam seus habitantes, destruíram casas, agrediram velhos, mulheres e crianças, mataram animais de estimação e se apropriaram de objetos e da história de vida de um punhado de gente que lutava por um naco de terra para morar. Se existia a liminar da 6ª Vara Cível, que determinava a reintegração de posse, existia também uma manifestação do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que proibia a investida militar contra a ocupação.

Em poucas horas, o Pinheirinho foi varrido do mapa. A operação que devolveu a Naji Nahas um patrimônio de origem controvertida teve a coordenação direta da Presidência do Tribunal de Justiça. Os motivos para tanto empenho, evidentemente, nunca foram declarados. O que se sabe é que o aparecimento de uma comunidade como aquela, dotada de autonomia, linha política e organização, contrariou a ordem vigente, que confunde pobreza com criminalidade e reserva o melhor da cidade à gente “de bem”, com seus dinheiros e seus sonhos individuais.

O Pinheirinho nunca deixou de ser estranho ao conservadorismo de parte influente dos moradores do Vale do Paraíba. O seu desaparecimento contemplou os desejos das elites locais. Além disso, movimentou personalidades da cúpula do Judiciário, que embarcaram numa guerra de indisfarçável caráter político e ideológico. Não há novidade nisso. O que aconteceu naquele janeiro triste foi a reprodução do cotidiano enfrentado por milhões de sem-teto espalhados pelo país desde tempos remotos. No começo do século XX, a expulsão de miseráveis dos centros urbanos se fazia com base em argumentos higienistas, sem disfarces. Mais recentemente, a aplicação da “lei”, via aparato da Justiça, serviu de mecanismo para atingir o mesmo resultado: “limpar” as áreas nobres das cidades e entregá-las à especulação imobiliária.

O que talvez tenha surpreendido os idealizadores do massacre foi a repercussão do caso. A enorme rede de apoio que se formou em torno do Pinheirinho pôs em evidência o lado podre do Estado que reprime a pobreza para conservar os ganhos de proprietários que não cumprem nenhuma função social. Esse esquema vergonhoso jogou num mesmo e constrangedor balaio membros dos Executivos estadual e municipal, polícias contaminadas pelo ódio e pela truculência, malandros de colarinho branco e, em especial, representantes do Poder Judiciário.

Ainda hoje, o terreno onde estava o Pinheirinho segue vazio. Vazio que escancara a injustiça de um modelo social que tem a desigualdade como regra. Mas nem tudo foram derrotas. Dez anos depois, os moradores expulsos vivem em outro lugar, chamado Pinheirinho dos Palmaras, em unidades habitacionais que puderam financiar pelo programa “Minha casa, minha vida”. Sua luta valeu, por mais que a violência institucional insista em dominar tudo, em deixar tudo como sempre foi, na tentativa de matar a esperança da maioria do povo. A esperança que, afinal, sobrevive.

Uma ideia sobre “Dez anos do massacre do Pinheirinho

  1. Clemilda martins

    Neste aspecto cabem as companhias de habitação, que recebem verbas milionárias para atender a baixa renda, atua de forma conivente.
    A maneira de se ter moradia digna e fazer áreas, de especuladores cumprirem a função social é apoiarem o cooperativismo habitacional, fugir de juros e ganhos abusivos de construtoras que vivem do nicho habitação econômica.
    As COHABs deveriam com suas estruturas gerenciar a produção pelo sistema de cooperativa habitacionais, visto que desta forma a moradia custa 40% menos que os praticados.
    E também agirem com transporte coletivo no sistema de cooperativa, assim estes ,”bilhões repassados” deixariam de existir

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