7:03Você quer brincar na neve?

por Thea Tavares

– Você quer brincar na neve?

A princípio, não entendeu nada. Aquele era o e-mail mais estranho e intrigante que havia recebido na vida toda. Aquecia uma chama adormecida no coração de Henrique, como se voltasse repentinamente às belas confusões despertadas por paixões na adolescência, em que se descobre gradativamente o que acontece no corpo e na mente, à medida em que se defronta com as sensações e que começa a interpretá-las à luz do desconhecido e na balança da compreensão das atitudes certas e erradas com que se reage diante de situações novas. Curiosidade tímida e respiração pausada pelo estado de alerta embutido em um medo estimulante… Podia sentir o calor na pele, pousando a mão sobre o ponto inflamado do seu peito.

Antes de detalhar o conteúdo da correspondência, faz-se necessário explicar a pergunta digitada no campo “assunto” – “Você quer brincar na neve?” -, ao menos para quem não costuma ver desenho animado no cinema, nas plataformas de streaming, não tem esse entretenimento como uma das suas preferências entre as produções da sétima arte (e com cantoria, nem se fala!) ou mesmo não possui crianças e jovens de todas as idades em volta, que o force a tal passatempo. A frase, extraída de uma das sequências de “Frozen, uma aventura congelante”, dos estúdios Disney, está associada à insistência da pequena Anna em brincar e conviver com a irmã, Elza, que ficava trancada no seu quarto. Não cabe nesta explicação o debate sobre as adaptações e distorções feita por Hollywood em “A Rainha da Neve”, história original de Hans Christian Andersen, apenas contextualizar a frase da animação no e-mail que a corajosa Helena enviou para um assustado Henrique.

Na fantasia cinematográfica, a pequena e vibrante Anna, ligada em “880 volts”, acordava de madrugada e procurava a irmã mais velha para brincar. Elsa, dotada de incríveis poderes mágicos para produzir neve, fabricar pistas de patinação e estruturas de gelo, atendia seus pedidos, entretinha e mantinha acesos o afeto e a cumplicidade entre ambas. Até que um acidente doméstico, durante uma dessas brincadeiras, machucou involuntariamente a pequena Anna, que adoeceu. Os pais, com a habilidade de um bisão sobre uma lâmina de água congelada, em gesto de amor e instinto de proteção desastrados, logo afastaram as duas irmãs, esconderam a mais velha dos julgamentos alheios, aumentando a sensação de culpa nela e alimentando um receio de que suas forças, uma vez não controladas, e sua capacidade em ser diferente, uma vez não compreendida, representassem algum perigo para a vida e para o bem estar da caçula ou da comunidade. Para restabelecer a saúde, Anna teve a memória dos poderes da irmã apagada de suas lembranças, mas não se esqueceu da felicidade que sentia na companhia de Elsa e muito menos do seu amor por ela. Por isso, durante anos e anos, na chegada do inverno, que nos países nórdicos corresponde à estação mais longa de todas, Anna insistia em bater à porta do quarto de Elsa, com a pergunta habitual: – Você quer brincar na neve? E sempre desistia (até insistir novamente no dia seguinte e no outro) com um suspiro resignado: – Tudo bem.

Henrique se lembrava da frase, mas também precisou revisitar, em busca no Youtube, as cenas da animação para não deixar escapar um único sentido da mensagem enviada por Helena naquela madrugada, chamando-o para “brincar na neve”:

Olá! Por favor, não estranhe este contato. Ou tente não estranhar. [Era tarde para ler aquilo. Havia estranhado desde a linha do assunto]. É apenas e tão somente um pedido de amizade. Levei horas decidindo se o fazia, mas os tempos turbulentos que atravessamos também nos municiam de coragem para não precisar explicar ou envergonhar-se de um gesto de amizade. Você concorda?

Sinto a necessidade de conversar com você e de estabelecer essa comunicação que, na minha certeza (ou ingenuidade), não representa algo ofensivo ou mal intencionado, mas agradável para ambos. Extraio tais conclusões da leitura dos seus artigos e das reflexões que eles provocam e que nutrem em mim uma profunda identificação com suas ideias. Aliás, é tão desconcertante a semelhança percebida, que chego a me questionar se a memória me trai e isso faça com que eu esqueça de já termos dialogado antes sobre tais temas. Se metade das palavras e pensamentos expressos ali encontrar lastro nas verdades que ressoam das suas próprias reflexões, opiniões e vivências, acredito termos inúmeros interesses, curiosidades e anseios comuns.

A história das irmãs brincando e da cumplicidade entre elas, curiosamente me transportou direto para os momentos mais alegres da infância e para significados que persistem até hoje em escolhas e decisões que envolvem conflitos éticos e autoconhecimento. Sou grata por suas palavras e admiradora da forma como você pontua com leveza, motivação, respeito pela vida, com esperança e, ao mesmo tempo, percepção de humanidade e realismo, claro, as situações do cotidiano. Espero realmente não importuná-lo com essa abordagem, mas apenas aproveito para registrar este meu agradecimento. Também saberei respeitar o silêncio ou mesmo a impossibilidade de corresponder a esse pedido, sem a necessidade de formular justificativas. Abraços!”.

Ele pensou que para qualquer pessoa na face da Terra, aquilo soaria não só estranho, como descompensado e revelador de fragilidades emocionais, até psíquicas. Mas não para ele. A inexplicável, mágica, forte e supostamente absurda conexão entre os dois há muito que passeava de mãos dadas com seus próprios conflitos emocionais, projeções e fugas da realidade. Nestes momentos, em especial, pensar nela era confortável, uma espécie de descanso mental e um respiro de paz em meio ao cansaço da jornada. Em sua imaginação, nos sonhos e em todos os elementos criativos possíveis, bem como aproveitados na construção de suas narrativas, eles já conversavam, eram íntimos, previsíveis, cúmplices e confiáveis. Sem máscaras, disfarces ou adornos. Eram só eles mesmos, em formato essencial.

Ainda assim, não sabia como responder àquele chamado, só que o faria em outro momento. Era tarde até para pensar com clareza e assertividade. Sabia que, na madrugada, corria o risco de dar asas às suas mal disfarçadas emoções e talvez as palpitações que lhe aqueciam o peito levassem seus dedos a revelar mais do que se permitiria fazer com segurança na claridade racional do dia. O magnetismo da Lua tem dessas coisas. Queria – e ela não merecia menos, em resposta a sua sinceridade corajosa, num mundo hipócrita e que supervaloriza as aparências – ao menos escolher as palavras com o máximo de cuidado e consideração.

Imaginou a incansável Anna do desenho, deslizando com seu afeto incondicional na porta de Elsa, suspirando: – Tudo bem.

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