7:42Só por hoje 27 anos

Apenas para lembrar aos que ainda sofrem, na busca por lucidez e paz de espírito, mas no encontro com o horror, que um integrante deste grande time de dependentes de álcool e de todas as drogas que nos aniquilam, está conseguindo manter a sobriedade, só por hoje, há 27 anos. Nesta caminhada, com a ajuda de todos, priorizando o tratamento da doença incurável, perdi amigos e vi desconhecidos tirando a vida de inocentes. Sou um milagre, como ensina os fundamentais Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA). Agradeço, priorizo e sigo fazendo o que aprendi e aprendo cada vez mais na conversa com os médicos, psicólogos, voluntários, pacientes internados, conhecidos que estão fora das clínicas e buscam o caminho para que ‘a ficha caia’, como costumamos falar. Retomar o controle da própria vida também é poder enxergar e dar valor aos que estão ao nosso lado e amamos. Segue um texto escrito e publicado quando o signatário completou 23 anos de retomada da vida como ela é.

Um dia é igual a 23 anos

Vinte e três anos é igual a um dia. Em 24 de outubro de 1994, nessa mesma hora, ele estava injetando mais uma dose de cocaína. A agulha da seringa estava rombuda, sem fio, mas ele forçou e a enfiou na ferida que tinha no braço direito, onde sempre conseguia encontrar a veia. Estava fazendo isso há quatro dias seguidos, depois de comprar 20 gramas do traficante que o abastecia. Na noite anterior teve convulsões no quarto de um outro hotel de Curitiba. Se fosse uma overdose, teria sido encontrado morto horas depois. Lembra hoje que pediu ajuda logo depois não para encontrar o caminho da salvação, mas porque não via mais nenhuma saída para sua vida. Nessa hora, hoje pensa, alguns partem para o ato final, seja tomando uma dose cavalar ou buscando um outro meio. Por isso, do outro lado da linha, quem o atendeu perguntou se ele estava perto da janela daquele prédio. Esta descrição pode chocar, mas no universo paralelo da drogadição há coisas mais terríveis. Vinte e três anos é igual a um dia é o que ele diz aos seus amigos internados na mesma clínica para onde foi levado e hoje presta serviço de voluntário. É a mais pura verdade. A simples e maravilhosa lição da irmandade dos Alcoólicos Anônimos (não existe dependência de uma droga específica, porque dependência é a doença – e ela se manifesta até sem o uso de substâncias lícitas ou ilícitas, como no cado do jogo) é um dos pilares para a retomada do controle da própria vida. “Só por hoje”. Quando conseguiu ouvir de verdade isso, ele começou a se tratar. A descoberta de que podia viver sem o uso, mas apenas por 24 horas, sem a ilusão do “nunca mais”, foi fundamental para começar a entender os outros fundamentos que o mantém “limpo”. Admitiu a doença, colocou o tratamento como prioridade de vida, porque sem isso não existe o resto, reconheceu que seu problema não era a droga em si, mas o que o levou a ela (aí incluído o álcool e maconha, de que fez uso antes de priorizar a cocaína) – e a importância de vencer o fantasma de se olhar e se descobrir um pouco através da terapia. Tinha recaído duas vezes antes de atravessar a porta daquela clínica que hoje é seu porto-seguro nas reuniões, palestras e plantões que faz religiosamente toda semana. Aprendeu que sua doença é incurável, aprendeu a identificar os momentos de risco que corre, aprendeu que, sim, se for preciso tomar remédios de uso contínuo para manter o equilíbrio emocional, é fundamental tomá-los. Mais que tudo, aprendeu que conversar sobre os sentimentos, seja com o terapeuta, o padre, o pastor, o amigo mais próximo e confiável, é a chave para transformar os demônios e fantasmas internos em algo que pode ser enfrentado. A saída mais fácil é a pior. Pedir ajuda, como ele pediu naquele sábado de manhã, é como a boia que aparece aos náufragos. Isso em qualquer momento da recuperação, que é para sempre. A imagem do tubarão que existe dentro da alma dos dependentes é perfeita. Ele está quieto, parado, mas vivo e o alimento para que devore é dado pelos momentos de fraqueza. Ele diz ao “seu time”, como gosta de repetir sempre, que uma das melhores coisas que existem para quem está caminhando em sobriedade é que, ao contrário da maioria das pessoas que, graças a Deus, não têm este tipo de problema, se pode comparar como está e como esteve durante o período das trevas, das catacumbas. A vida, esse mistério entre o nascer e o morrer, de certa forma é desprezada na correria do dia-a-dia. A vida, para quem esteve perto da morte e depois descobriu isso, é o que sustenta e faz segurar os trancos – mas também se iluminar com o que há de melhor, que são as coisas simples e absurdamente belas. O relato dele só foi possível porque sou eu.

 

7 ideias sobre “Só por hoje 27 anos

  1. Birn Neto

    Belíssimo, oportuno e útil depoimemto. Parabéns pela coragem de não se esconder e nem se omitir, pelo esforço e exemplo. Abraço.

  2. José Maria

    Como me emociona, comove e desperta admiração,
    O relato é uma maravilhosa peça humana emoldurada com a arte da literatura .
    Vou procurar compartilhar como puder
    Um beijo fraterno com toda a estima do amigo
    José Maria

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