por Demétrio Magnoli
Ditaduras desse tipo operam a repressão de dentro, por meio do Partido-Estado
A ditadura castrista completou 62 anos e, há duas décadas, resiste à implosão da URSS. No Brasil, o regime militar perdurou por 21 anos; no Chile, a tirania de Pinochet prolongou-se por 17; na Argentina, a ditadura militar durou quase oito anos. Qual é o segredo da longevidade do castrismo?
A vontade do povo? O cínico argumento, repetido como mantra pelo PT e pelo PSOL, pode ser rebatido pela prosaica constatação de que ao povo cubano não se dá o direito de opinar em eleições livres. Mas, sobretudo, ele descerra uma pungente duplicidade moral, pois a lógica exigiria estendê-lo ao Brasil e concluir que a ditadura militar —com seu cortejo de repressão e tortura— teria representado a vontade do povo entre 1964 e 1985.
O regime cubano beneficiou-se de vantagens circunstanciais. Na Guerra Fria, Cuba foi largamente financiada pela URSS. Em contraste, a ditadura argentina perdeu seu reduzido lastro externo na Guerra das Malvinas (1982) e os regimes ditatoriais no Brasil e no Chile enfrentaram pressões pela abertura desde a posse de Jimmy Carter nos EUA, em 1977.
Paradoxalmente, o castrismo extrai força da hostilidade dos EUA. A concessão quase automática de abrigo aos exilados cubanos propiciou o êxodo de quase um décimo da população da ilha, o que reduziu as taxas de crescimento demográfico e, principalmente, deslocou para o estrangeiro uma ampla base social de oposição ao regime. Já o embargo econômico ofereceu à ditadura dos Castro um valioso álibi político, utilizado tanto para justificar as carências internas quanto para marcar a testa de dissidentes com o rótulo de traidores da pátria.
Falando como boneco de ventríloquo de Díaz-Canel, Lula acusou o embargo (“bloqueio”, na linguagem dele e dos Castro) pela pobreza e pela crise sanitária na ilha. Mas o embargo exclui alimentos ou remédios e o governo cubano escolheu não solicitar vacinas à Covax. De mais a mais, a China, principal parceira de Cuba, não se curva às restrições comerciais impostas pelos EUA.
Mas o segredo está em outro lugar: o sistema totalitário. A URSS sobreviveu por mais de 70 anos, um horizonte inviável para regimes meramente autoritários. Ditaduras comuns reprimem a sociedade civil a partir de fora, utilizando basicamente engrenagens estatais. Ditaduras totalitárias operam a repressão essencialmente a partir de dentro, por meio do Partido-Estado.
O Partido Comunista cubano tem 700 mil filiados, numa população de 11 milhões. Os “revolucionários” não são atraídos por elevados ideais socialistas mas por benesses materiais que se estendem de empregos no setor público à garantia de vagas nas universidades. O Partido-Estado forma uma rede de clientela política inimaginável em outros sistemas de poder.
Em Cuba, a vida social e cultural desenrola-se à sombra do Partido-Estado, que controla os sindicatos, as associações de bairro, as entidades profissionais e artísticas. Sem a chancela do Partido, ninguém recebe autorização para abrir um negócio, viajar ao exterior, publicar um livro ou produzir um espetáculo.
Participar de uma manifestação oficial confere pontos no ranking oculto de distribuição de benefícios. Participar de uma manifestação de protesto acarreta, além de eventual detenção, ostracismo social prolongado.
O Partido-Estado não é um aparato distante, mas um vizinho bisbilhoteiro. Os Comitês de Defesa da Revolução, que organizam os militantes por bairro, formam os “olhos e ouvidos da revolução”, na apropriada definição de Fidel Castro. O participante de um protesto não permanecerá anônimo: será identificado, perderá o emprego e, com seus familiares, sofrerá assédios e experimentará o cancelamento de direitos. O totalitarismo é a ditadura perfeita.
Cuba desistiu do socialismo, como sistema econômico. Restou o sistema de poder totalitário. É isso que Lula defendeu.
*Publicado na Folha de S.Paulo