por Mario Sergio Conti
Brasil parece exasperado com o espantoso número de cadáveres, com a risada bárbara e triunfante do presidente
Com a estada sem fim do Brasil no inferno, algumas palavras perderam o sentido. Genocídio, por exemplo. Como significava massacre de um número enorme de pessoas, ela implicava uma ação urgente caso se visse um genocida em ação: a de impedir que ele continuasse a matar.
Não mais. Há por certo que ache que Bolsonaro, por ações e omissões, seja culpado de milhares de mortes. Mas como ninguém age para que pare de matar, o genocídio deixa de ser grave. Vira quase o equivalente a equívoco —uma ação bem-intencionada, no máximo ineficaz.
Seria melhor então deixar o preciosismo vocabular de lado e chamar Bolsonaro de tolinho? E como se caracterizaria sua política sanitária nesse ano de peste? Empenhada, salvadora de vidas, racional? São perguntas descabidas: 348 mil mortos não é brincadeira.
Como esses mortos eram gente de sangue e sonhos, há que se ser realista e admitir que, como ninguém quer que o presidente saia, pouco importa chamá-lo de genocida. “Ninguém” não é força de expressão: a nação inteira capitulou diante da hecatombe.
A leseira que tudo domina está enraizada nas classes sociais. Velhas lontras e novas capivaras do patronato acabam de bater palmas para o Errado do Cerrado, que pela enésima vez mentiu ao prometer vacinas que não tem, porque as boicotou no passado, e as menospreza no presente.
Do outro lado da contradição dialética, há a inação de sindicatos, partidos e organizações da sociedade civil. A paralisia de trabalhadores, funcionários e estudantes, nas periferias e campos, é perpetuada pelo medo da peste. Não há greves, protestos, saques. Até as panelas andam quietas.
Como se queria demonstrar: na base, no meio e no pico da sociedade, ninguém faz nada para barrar a sanha matadora de Bolsonaro, impedi-lo de exercer o poder. Em vez de ação, há palavras, palavras, palavras à la Macbeth —cheias de som e fúria, significando nada.
Daí não custa nada acrescentar outra palavra ao léxico do desespero, uma palavra que define essa inatividade aflitiva, essa agonia coletiva: exasperação. O Brasil parece exasperado com o espantoso número de cadáveres, com a risada bárbara e triunfante de Bolsonaro todo santo dia.
Um dos poucos alentos nessa exasperação foi o discurso de Lula quando o Supremo permitiu que voltasse à política. Sua reaparição teve o condão de desanuviar a fricção contínua provocada pela Bolsonada. O que ele fez seria pouco em tempos normais. Mas não são tempos normais.
O ex-presidente demonstrou que em larga medida a política visa o bem comum; que dá para fazê-la sem rancor boçal; que a peste pode ser enfrentada com razão e compaixão; que ele perdoa os que o perseguiram. Teve um comportamento presidencial e patriarcal. Por isso se destacou.
Destacou-se de seus antecessores. Sarney emudeceu; Collor, FHC e Temer sempre falam com intenções abertamente subalternas; Dilma é confusa.
Já Lula, que perdeu a mulher, o irmão e o neto, passou de derrotado a vitorioso sem desdizer seu interesse primordial: o Brasil pobre. Seu atributo mais evidente é o carisma, atração que um corpo exerce sobre outros. No seu caso, o corpo se concentra na voz. É o maior orador em um século, superando os tenores da direita (Lacerda) e do centro (Brizola). E agora seu carisma tem um tom messiânico.
O Lula ressurreto tem algo de dom Sebastião, o rei que sumiu na batalha de Alcácer-Quibir, no século 16, e deu origem ao mito de que voltaria para tirar Portugal da decadência. Como o Brasil também está decadente, o retorno de Lula é associado à sua presidência, tempo em que o país progredia.
Não é de hoje que o discurso messiânico tem força aqui: é desde a pregação escatológica de Antônio Conselheiro em Canudos. É uma arenga ambígua porque se apoia no desespero dos pobres e dos explorados para atacar o poder; mas não os organiza em estruturas autônomas, racionais e radicais. O messianismo precisa, óbvio, de um messias.
Lula vem pregando a volta a um passado mítico, no qual todos se deram bem. É uma ilusão, ainda que com um grão de verdade. O Brasil era melhor; mas é inviável a repetição daqueles tempos —que aliás geraram o lamaçal de hoje.
Lula prega o diálogo de todas as forças políticas, o que é positivo, dado o sectarismo do atual presidente. Mas fazer isso sem agir para tentar destronar o exasperante Bolsonaro seria coonestar com o genocídio —seria se entregar aos usos e costumes da ratatuia que o enredou.