Anônimo
A música de corno é um clássico brasileiro. Desde Vicente Celestino e o seu Tornei-me Um Ébrio “e na bebida busco esquecer aquela ingrata que eu amava e que me abandonou”, de 1946, até o último sucesso qualquer da corno-music, mais conhecida como sertanejo-universitário, que só faz isso desde sempre e deve suas raízes às periferias das grandes cidades em que o velho e bom caipira vestiu macacão de trabalhador da indústria para cantar inicialmente Fio De Cabelo e lembrar com saudade da roça a partir de então. No dial de toda AM dos anos 1970 e 1980 a história só mudava de andamento para se reinventar em smash hits como Eu Não Sou Cachorro Não, de Waldick Soriano, legítimo brega que neste século cover que é o 21 se chama sofrência e reaparece em novos sucessos como Homem Não Chora, de alguém chamado Pablo. Mas quem acha que a dor de corno é coisa do andar de baixo nunca ouviu Chico Buarque. Sim, ele mesmo, o cantor da música de corno da classe média. Duvida? Antes de correr até o espelho para olhar a própria testa e checar a autoestima porque achava que ouvia música de intelectual, confira esta letra: “trocando em miúdos pode guardar… as sobras de tudo que chamam lar… as sombras de tudo que fomos nós… as marcas de amor nos nossos lençóis…” Confesse, é brega, é sertanejo-universitário puro sangue essa letra. E você, fã do Chico Buarque, nunca havia a si mesma confessado isso. Trocando em Miúdos é a típica MPB de boteco, que toca até hoje em bares para maiores, a turma que já tomou ou está prestes a tomar ao menos a primeira dose. Da vacina, claro. “Aquela aliança, você pode empenhar… ou derreter…”, continua o doutor Buarque de Hollanda, no melhor estilo maquiagem borrada de choro, para então dar um up classe média na letra e passar um verniz intelectual com o verso que finalmente resgata: “devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu”. Acusar de burrice vale? Não, não vale. Porém, ao traído, à traída, resta um fiapo de suposta superioridade moral. Chico Buarque é especialista nisso. Despeito, ressentimento, frustração, raiva, ofensas disfarçadas de cultura superficial em citações sem consequências, tudo isso é uma letra típica de Chico Buarque quando fala das dores da cornice que ele parece conhecer tão bem. É aí que repousa a sua inteligência, na capacidade de decodificar a vida comezinha para codificar novamente em letra de canção as situações comuns a tantos, o que o fez popular. A melodia é bonita, o jogo de palavras é simples e funcional, de maneira que o sucesso aconteceu. Vale ouvir, porque, independentemente da letra, a canção é bonita. E vale ouvir ainda como registro de época. Mas, para não ficar apenas no terreno movediço da cornitude nacional, é preciso lembrar que o já vacinado Chico também foi também capaz de coisas que desafiam o senso comum, letras que, em prosa, são poesia da razão. Provas? “Não vou duvidar, ó, nega. Mas se Deus negar? Eu vou me indignar e chega. Deus é um cara gozador, adora brincadeira. Pois pra me jogar no mundo tinha o mundo inteiro. Mas achou muito engraçado me botar cabreiro. Na barriga da miséria nasci brasileiro.” E assim ficamos nós, faceiros, no galope da pandemia. O Brasil é o país do Partido Alto. Vai uma vacina aí?
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https://www.youtube.com/watch?v=48kf5eG5yeY
https://www.youtube.com/watch?v=PxNmQYbbkco
https://www.youtube.com/watch?v=M3_405oMg3s
https://www.youtube.com/watch?v=h1lx2-KObQk
https://www.youtube.com/watch?v=OzfojnT9akw
https://www.youtube.com/watch?v=URwC53zmaRg