6:51René Ariel Dotti por inteiro – parte VIII

por Paulo Roberto Ferreira Motta

Em outra ocasião, o professor Lorusso perguntou se o René estava na sala dele, precisava despachar um assunto difícil. Respondi que, se o assunto era difícil, era melhor dar um tempo, voltar no outro dia, o professor René estava furioso naquele dia. Danilo me fuzilou com os olhos e disse: “Você nunca viu o René furioso. Depois do expediente, vá na minha sala que eu te conto sobre o René furioso”. Terminada as tarefas do dia, fui até a sala do Lorusso. Ele me disse: “Senta aí! Quer ouvir?”. Respondi que sim.

“Eu tinha escritório na Rua XV e o René na Marechal Deodoro. Num janeiro muito quente, sai do escritório no final da tarde e me deu uma vontade de tomar um chope. Minha esposa e meu filho estavam na praia. Lembrei do René, sabia que a Dona Rosarita e as duas meninas pequenas estavam de férias no interior do Rio Grande do Sul. Desci a galeria Minerva e fui no escritório do René. Ele estava saindo do prédio e eu o convidei para o chope. Ele respondeu que era uma grande ideia e fomos a um bar no Alto da XV. Sentamos, pedimos dois chopes e uma carne de onça. Já tínhamos terminado os chopes quando chegou a carne de onça. Pedimos mais uma rodada. Ainda não tinham trazido as tulipas quando entrou no bar um cidadão negro. Quando o cidadão ia sentar, o dono do bar saiu de trás do balcão, foi em direção a ele, e disse que naquele estabelecimento não serviam negros. O René ficou possesso, levantou da mesa, pegou a cadeira e saiu arrastando toalhas, pratos, tulipas e guardanapos. Tudo se espatifou no chão. Só tive tempo de sair atrás do René e impedir que ele quebrasse a cadeira na cara do dono do bar. O René se acalmou um pouco e gritou que naquele bar nunca mais pisava. Disse que ia beber em outro. Dirigiu-se ao cidadão negro e falou: “O senhor é meu convidado”. Fomos os três para outro bar ali perto. Repetimos o pedido, desta vez com três chopes. O cidadão ficou muito agradecido e emocionado. Anos depois, o negro procurou o René no escritório. Estava separado há vários anos e queria fazer o divórcio para poder casar de novo. O René aceitou a causa. O cidadão perguntou sobre os honorários e o René respondeu que, ao final do processo, falariam sobre isso. Terminado o divórcio, o cidadão procurou René para pagar os honorários. O René respondeu: “Meu senhor, vamos chamar o professor Danilo Lorusso e tomar uns chopes e comer uma carne de onça. O senhor paga a conta que será exatamente o valor dos honorários”.

Às vezes, o professor René trocava os nomes das pessoas. Constantino Viaro virava Guido (nome do pai dele). Reinaldo, invariavelmente, era Ronaldo. O Sale, de vez em quando, era transformado em Samuel. Um dia, na frente do Aramis Millarch, me chamou de Paulo César. Millarch nunca mais deixou de falar Paulo César. Houve uma época em que o professor René estava negociando a vinda a Curitiba da exposição do Leonardo da Vinci (que merece uma história à parte). Aramis farejou e me ligou. Expliquei que as coisas estavam indo a contento e era bem provável que a exposição viesse. No outro dia, saiu na coluna dele: “Paulo César Motta, assessor especial do secretário René Dotti, garantiu que a exposição de Leonardo da Vinci vem para Curitiba no segundo semestre”.

Num belo abril, o Requião, que havia revitalizado a Praça Tiradentes, resolveu entregar a obra no dia da comemoração do Mártir da Independência. Convidou o professor René para fazer o discurso de exaltação ao herói. No dia 21, fomos o professor, Reinaldo e eu, caminhando até a praça. Com muitos transeuntes vendo os carros oficiais chegando, começou a juntar gente na frente do palanque das autoridades. O professor, antes do discurso, começou a saudar as autoridades presentes. Excelentíssimo Senhor Governador Álvaro Dias, Excelentíssimo Senhor Prefeito Rubens Requião (professor Rubens era o titular de direito comercial da Faculdade de Direito e colega de docência do professor René). O pessoal começou a rir e o René nem percebeu. Terminada a oração, deram a palavra ao Roberto Requião. Ele não se fez de rogado. Depois de saudar o governador lascou: Excelentíssimo Senhor Secretário de Estado da Cultura, professor Alcides Munhoz Neto (que era o outro titular de direito penal da Faculdade). O professor René encarou o Reinaldo e a mim e disse: “Ele me chamou de Alcides?” Nós respondemos: “Sim, o senhor o chamou de Rubens Requião”. O René começou a rir e depois foi abraçar o Roberto, desculpando-se.

O humanismo radical do professor não era só teórico e objeto de discursos e orações. Era vivido intensamente. Certa feita, recebeu em audiência a diretoria do Sindicato dos Artistas formada pelo Aluizio Cherubin, Lucina Cherubin e Yara Sarmento. Narraram a situação dramática dos circos do Estado. Diziam que viviam na mais absoluta miséria e que não aguentavam pagar as altas taxas que a Polícia Civil e as Prefeituras lhes cobravam para a concessão dos alvarás para se instalarem nas cidades. Que as crianças não frequentavam a escola e que eram completamente desassistidos pelo Poder Público. O professor ficou impressionado, desconhecia essa realidade. Chamou o Sale Wolokita e deu a ordem: “Sale, pegue um dos seus perdigueiros, preferencialmente não funcionário da Secretaria, para não dar na vista, e mande ele achar um circo que esteja aqui por perto e verifique a situação”.

Sale não poderia escolher pessoa melhor: Laerte Ortega, natural do norte do Paraná, radicado há muitos anos em Curitiba, diretor de teatro. Suas peças tinham forte influência circense e eram apresentadas, quase sempre nas ruas. Seu grande sucesso era o “Grande Circo Padú”, com várias montagens e muitos elencos através dos anos. Laerte localizou um circo na periferia de Bocaiúva do Sul, pediu um carro da Secretaria, sem motorista, e se mandou pela manhã cedo. Voltou no final da tarde, levou horas para achar o circo. Na noite anterior, havia caído uma tempestade em Bocaiúva e o circo, com a lona toda rasgada e remendada não segurando a água, havia virado um lamaçal. Com a chuva não houve bilheteria e o dono do circo, sua esposa os sete filhos, um cachorro e um gato (todo o elenco da companhia circense) não tinham o que comer. A mãe foi pedir fiado na venda e o dono, apenado, lhe deu um saco de arroz e um pacote da farinha. Laerte chegou na hora do almoço. A mulher cozinhava o arroz numa lata em cima do fogareiro. Pegou água numa bica e jogou na farinha que estava em outra lata. A papa foi atirada em cima do arroz. Laerte, que conhecia a linguagem circense, começou uma conversa. O pai era o mestre de cerimônias, a mãe fazia uns números de saltos ornamentais. A filha mais velha era trapezista, fazia um número perigosíssimo, era içada ao trapézio pelos cabelos, um erro e morreria escalpelada. Os outros eram palhaços, malabaristas e etc. Laerte estranhou que os cinco primeiros filhos tinham de 10 a 17 anos. Os dois mais moços, um menino e uma menina, tinham, respectivamente, dois anos e seis meses. Mas não falou nada. O menino de dois anos estava nu. A única roupa que possuía estava no varal secando do temporal. A menina de seis meses, vestida com trapos, não saia do colo da “irmã” mais velha. Lá pelas tantas a menina começou a chorar de fome. A “irmã” mais velha saiu e foi para dentro do trailer onde todos se amontoavam para dormir. Laerte não aguentou e saiu atrás. Pela janela, viu a “irmã” mais velha tirar o seio para fora do vestido e dar de mamar a bebê. Chamou o dono do circo num canto e lhe deu uma prensa. O cara confessou: os dois filhos mais moços eram dele com a filha mais velha. Era pai e avô ao mesmo tempo. A menina de 17 anos era irmã e mãe dos mais novos. Tudo isso foi narrado ao professor René que, ao final do relato, colocou as mãos no rosto e ficou um tempo bastante longo naquela posição. Depois, colocou as mãos na mesa e disse: “Vou começar a resolver isso ainda hoje”. Agradeceu ao Laerte, disse que voltariam a falar, e foi para casa.

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