6:07NELSON PADRELLA

DIÁRIO DA PANDEMIA

O ensaio estava a meio pau. Meio pau é a maneira de falar. Aí, chegou a síndica e botou todo mundo em roda. Um atrás do outro, fechando um círculo. O capitão com a sanfona e o garoto no reco-reco. Ao primeiro fooom da sanfona e o rec-rec produzido pelo garoto, todo mundo pôs-se em movimento. Aí, a síndica gritava: “Olha a vacina”, todo mundo apressava o passo. E ela dizia: “É mentira”, e o grupo voltava ao passo normal. “Viva o Dória”, e todos levantavam os braços, em louvação. “É mentira”. Todos abaixavam os braços e faziam cara de tristeza. E a síndica: “Tem vacina pra todos”. Os componentes da roda davam gargalhadas histéricas, demonstrando alegria. “É mentira”. Todos faziam snif snif fungando o nariz. E a coisa progredia. Ora a voz da sanfona do capitão encobria o reco-reco do menino, ora o reco-reco fazia-se mais evidente do que a sanfona. O condomínio preparava-se com muita antecedência para os folguedos juninos. E estavam nessa prevaricação generalizada – seja lá o que isso signifique – quando Dona Humildes tomou uma atitude. Religiosa ao extremo chegou na roda com chicote na mão e botou todo mundo pra correr. “Tomem tento, safados; tamo na Coresma”.

Filme: QUE HORAS ELA VOLTA? (Filme brasileiro premiadíssimo, com Regina Casé no papel principal. Direção de Anna Muylaert). Os pais descuidam-se por um momento da filha Democracia, e a menina é levada por forças do Mal.

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