Do Financial Times, por Janan Ganesh
… A posse de Joe Biden como presidente dos EUA, na semana passada, produziu uma onda emocional da mídia que não se via desde, digamos, a última vez que um democrata estava na Casa Branca.
… Esse entusiasmo meloso envolve ao menos dois problemas. Um é que ele confirma as suspeitas dos americanos conservadores. O quadro que fazem da elite liberal como um grupo que trama contra o povo é errado e perigoso. Mas a acusação menor – de que o seu potencial crítico se desfaz quando os democratas governam – tem sido difícil de refutar.
Biden terá de escolher entre união ou sua agenda
O novo presidente dos EUA logo terá de fazer uma escolha: ou busca unir o país, como pediu no discurso de posse, ou avança na sua agenda progressista, que é refutada pelos conservadores. Será impossível fazer as duas coisas
A posse de Joe Biden como presidente dos EUA, na semana passada, produziu uma onda emocional da mídia que não se via desde, digamos, a última vez que um democrata estava na Casa Branca. Uma emissora viu as luminárias paralelas da National Mall como “os braços presidenciais abraçando os EUA”. Para outros, o olhar sentimental lançado pela primeira-dama quase fez Biden chorar.
Esse entusiasmo meloso envolve ao menos dois problemas. Um é que ele confirma as suspeitas dos americanos conservadores. O quadro que fazem da elite liberal como um grupo que trama contra o povo é errado e perigoso. Mas a acusação menor – de que o seu potencial crítico se desfaz quando os democratas governam – tem sido difícil de refutar.
O outro problema com as efusões da semana passada é gerar esperanças impossíveis. Os esquerdistas saudaram o apelo de Biden à união nacional. E também comemoraram sua visão de mudanças progressistas. Mas esses dois projetos são inconciliáveis. Se Biden quiser ser o presidente mais de esquerda desde a década de 1960 (alguns dizem que desde a década de 1930), vai se indispor com os republicanos e dividir os EUA. Se se mantiver fiel à sua carreira e a união nacional for o sonho maior, ele terá de abrir mão ou diluir boa parte de sua agenda doméstico.
Qualquer dessas duas opções é correta. Mas trata-se de uma opção. Não haverá cooperação radical entre os dois partidos.
Isso apesar da derrota eleitoral republicana, do ataque ao Congresso (do qual os republicanos foram, inadvertidamente, cúmplices) e de um aceno de paz no discurso de posse de um novo presidente bem-aceito que é também amigo pessoal de décadas a fio. Se essa é a postura republicana agora, como será no ano que vem, quando o governo estiver desgastado e quando toda a vergonha conservadora que existir em torno da era Donald Trump tiver se esvaído? Ou no mês que vem, quando o Senado deverá julgar o ex-presidente.
Não só não haverá nenhuma ajuda republicana para a expansão do governo, como o surgimento de um outro Tea Party – ainda mais tosco do que o primeiro – é altamente provável. A expansão do Medicare (o sistema federal de saúde para os maiores de 65 anos) e uma alíquota de imposto de pessoa jurídica de 28% serão recebidos com a pecha de maoísmo.
Essas e outras políticas de Biden têm bom apoio nas pesquisas. Mas, se há algo que aprendemos nos últimos anos, é que uma minoria feroz pode insuflar um país. Os que incitam o novo presidente a ser fiel à sua agenda, e eles são muitos, têm de saber que essa postura vai contrariar a promessa de paz cívica que, de resto, foi o argumento mais forte em seu favor.
O argumento mais forte da esquerda contra a candidatura Biden sempre foi tático, não ideológico. Diz que alguém que chegou a Washington em 1972 nunca se acostumou com a ascensão do sectarismo político. A confiança dele na boa fé de seus opositores é tamanha que ele será uma presa fácil. Seu compromisso com a união dos EUA é tamanho que ele preferiria um governo insosso a um governo ativo. O meio século de Biden na vida pública parece dar razão a eles. Mas a agenda que ele defendeu, e ainda defende, aponta para um caminho oposto. Os próximos anos dependem de qual será o verdadeiro Biden, o das propostas arrojadas ou o do tom brando.
“Com união poderemos fazer coisas grandes”, diz o presidente, num bordão que nem por ser doce ganha em precisão. Fora das guerras, é exatamente sem união que as coisas grandes acontecem. O New Deal foi muito desagregador, mesmo liderado por Franklin Roosevelt. Os direitos civis foram tão polêmicos a ponto de mudarem a geografia eleitoral do país.
Não há caminho harmonioso para o tipo de sociedade que os democratas desejam criar. Após a era Trump, eles têm direito a sentimentalismo pateticamente exagerado quanto à perspectiva de união e de reformas. Mas não das duas coisas.
Entre o discurso e a pratica há uma enorme distância.