por Eduardo Bueno
Preciso dizer que a cantora, compositora, dançarina, atriz, modelo e manequim de origem porto-riquenha Jennifer Lopez (que o pragmatismo ianque reduziu para J.Lo), nunca fez muito a minha cabeça. Mas eis que de repente, não mais que de repente, trajando sobretudo branco mais branco que o cavalo branco de Napoleão e com diamantes do tamanho do Ritz pendendo das orelhas, ela adentrou a varanda do Capitólio – sem invadi-lo: fora convidada para estar ali – e soltou a voz cantando “This Land Is Your Land”, de Woody Guthrie.
Woody Guthrie (1912-1967) foi um dos pilares da canção de protesto, se não o seu inventor. Militante incansável, cujo violão trazia gravada a mensagem “Essa máquina mata fascistas”, andarilho, sem-teto, herói libertário e maior ídolo de Bob Dylan, ele compôs “This Land Is Your Land” numa espelunca em Nova York, em 1944. Seu objetivo era confrontar a edulcorada “God Bless America”, de Irving Berlin. “This Land Is Your Land” virou o hino da América insurreta, rebelde e combativa – quando isso não remetia a um bando de milicianos supremacistas brancos, terraplanistas com chifres na cabeça e o apoio tácito da polícia.
O que cabe assinalar aqui é que em 1950, quando já havia composto cerca de mil canções, Guthrie escreveu “Old Man Trump”. A música era sobre um especulador imobiliário escroque e racista que obtivera financiamento público para construir casas populares, mas desviou verbas, fez obras de péssima qualidade e impediu negros de morarem no conjunto habitacional Beach Haven, onde, por acaso, Woody Guthrie tinha ido parar. Esse ser ignóbil chamava-se Fred Trump. E era o pai do escroque, racista e ignóbil Donald Trump, então com quatro aninhos de idade – mas que já sabia mentir.
Trump, esse baita filho, já estava em seu enclave brega, na Flórida, enquanto J.Lo cantava, após Lady Gaga ter interpretado o hino dos EUA e antes de Bruce Springsteen, herdeiro direto de Guthrie e Dylan, tocar “We Take Care of Our Own”, canção que virou hino da campanha de Biden. Só que antes de partir para o que se espera seja o eterno opróbrio, o filho de Fred Trump ainda cometeu uma última ilegalidade: despediu-se da presidência ao som de “Macho Man”, do Village People. A questão não é a escolha da canção – divertida e debochada (embora eu duvide que o desprezível homem-cenoura seja capaz percebê-lo). A questão é que o Village People já havia proibido o tramposo de tocar as músicas deles.
Como seu pai, Donald Trump sempre achou curto o braço da lei. Acontece que agora periga ser pego de calças curtas pelos cocares, jaquetas de couro e cassetetes do Village People – ou pelo violão de Woody Guthrie –, enquanto os EUA podem enfim seguir sua trilha sonora longe dos esgares e grunhidos do old man Trump.
*Publicado no jornal Zero Hora