5:45Se o governo brasileiro seguir na sua realidade paralela, ficará falando sozinho

por Elio Gaspari

Trump levou consigo capacidade de operar numa realidade paralela, dimensão frequentada por Bolsonaro

Ao meio-dia desta quarta Joe Biden deverá assumir a Presidência dos Estados Unidos, e Donald Trump foi-se embora.

No Brasil, começou a ser aplicada a vacina contra a Covid. Mudou o jogo. Dois centros irradiadores de ansiedade e morte perderam a iniciativa. O capitão Bolsonaro e o general Pazuello podem dizer o que bem entenderem, mas há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde? Trump continuará dizendo que ganhou a eleição, mas Biden estará no Salão Oval.

Bolsonaro e Pazuello continuarão em guerra contra João Doria, mas foi ele quem acelerou a chegada da vacina.

No caso do relacionamento com o governo de Joe Biden, o problema será outro. Noves fora todas as pirraças de uma diplomacia que se sente bem colocando o país na condição de pária, haverá uma nova realidade na Casa Branca. (Na Índia, a vacinação maciça imunizará seus párias, antes que as vacinas do general Pazuello cheguem aos marajás de Pindorama.)

No lugar de um delirante vulgar, estará na Casa Branca um mandarim que passou oito anos na Vice-Presidência e 36 no Senado.

Para o atual governo brasileiro, a chegada de Biden irá além das diferenças entre republicanos e democratas, ambientalistas e agrotrogloditas. Trump levou consigo a capacidade de operar numa realidade paralela, dimensão frequentada por Bolsonaro, pelo venezuelano Nicolás Maduro e pelo filipino Rodrigo Duterte.

O veterano diplomata americano Thomas Shannon, ex-embaixador no Brasil e ex-subsecretário de Estado no início da administração de Trump, já disse que as relações entre os dois países estavam fora do eixo.

Numa linguagem que não faz seu estilo, Shannon comentou o negacionismo eleitoral endossado por Bolsonaro: “É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido”.

Tendo perdido o farol trumpista, se o governo brasileiro continuar na sua órbita de realidade paralela, ficará falando sozinho, prisioneiro de suas fantasias.

Os americanos poderão controlar a agenda com um parceiro malcriado.

Lidando com a pandemia, Bolsonaro investiu-se de poderes que não tem. Como o mercado brasileiro é grande, ele supôs que os vendedores de vacinas e de seringas fariam fila à sua porta.

Acabou pendurado no imunizante “do João Doria” que demonizou, garantindo que “NÃO SERÁ COMPRADA” (maiúsculas dele).

A ideia de que o Brasil está no centro do mundo é pobre. O pelotão palaciano poderia ir à página 113 do livro “Kissinger e o Brasil”, do professor Matias Spektor.

Ele conta um encontro do secretário de Estado Henry Kissinger com o chanceler soviético Andrei Gromyko, ocorrido na manhã de 11 de julho de 1975. O Brasil acabara de assinar um acordo nuclear com a Alemanha, e Gromyko estava preocupado com a possibilidade de o Brasil vir a fabricar uma bomba atômica. (O embaixador americano em Brasília também desconfiava disso.) O chanceler soviético queria a ajuda americana para bloquear o projeto: “Vocês estão mais perto do Brasil geográfica e politicamente”.

Poderia ter começado uma discussão sobre as características do acordo, mas Kissinger deu uma resposta curta, de três frases, combinou manter Gromyko informado e arrematou:

“Tudo bem. Vamos almoçar?”

O acordo nuclear foi sumindo, sumindo, e sumiu

*Publicado na Folha de S.Paulo

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