por Carlos Castelo
Aos 17 anos passei 40 dias com a família na Europa.
Meu pai era uma pessoa bastante pragmática em relação a turismo. Para ele era preciso listar o essencial e cumprir as metas propostas. Por exemplo, na listagem dele de Paris havia Torre Eiffel, Arco do Triunfo, Louvre e Galerias Lafayette. Uma vez visitados, nós já poderíamos pular para Londres e bater ponto no Palácio de Buckingham, Trafalgar Square e Abadia de Westminster.
Creio que, em 15 dias de périplo, já havíamos ticado todas as atrações contempladas pelo meu pai. Foi quando começou a sobrar um tempinho para atividades fora da planilha.
Aproveitei uma tarde sem programação pré-fixada e me meti numa loja de discos londrina. Não era uma mega-store, na real era um minúsculo comércio de vinis – não havia cd naquela época – especializado em jazz.
Fui indo de prateleira em prateleira até me deparar com um sub-gênero que nunca tinha ouvido falar: manouche.
Puxei um elepê e vi na capa um guitarrista de nome estranho solando o braço de um violão com apenas dois dedos. Começava ali, naquela pequena birosca da City, a minha obsessão pelo jazz cigano capitaneado por Django Reinhardt.
Pedi ao vendedor para escutar a obra. Na segunda faixa já estava convencido de que aquela seria a trilha sonora da minha existência e que ela passaria a me acompanhar pelo resto da vida.
Trouxe daquela esquemática viagem familiar todos os álbuns de Django que consegui enfiar na mala. E, durante anos, ouvi-os em casa, em cassetes no walkman ou no toca-fitas do carro.
Por muito tempo achei que era a única pessoa que conhecia gipsy jazz na Terra. O que me proporcionava um grande prazer pela exclusividade do fato.
Isso até assistir Poucas e Boas, de Woody Allen, em 1999.
A história se passa na Nova York dos anos 1930. Nela, Emmet Ray (Sean Penn) era considerado um excelente guitarrista de jazz, sendo superado apenas pelo lendário Django Reinhardt (Michael Sprague). Curiosamente, nas poucas vezes que Emmet viu Django, sempre desmaiava. Apesar de toda a sensibilidade para a música, Ray no início era um parasita, que por trás dos bastidores ganhava a vida como cafetão antes de obter fama.
E por aí vai a trama alleniana com seus conhecidos quiproquós à la Tchecov.
Não preciso dizer que ver o meu ídolo sendo dividido com o mundo me deprimiu. Como aquele narigudo neurótico podia ter o mesmo gosto musical que eu? Teria ele entrado na lojinha de vinis londrina antes de mim só pra arruinar minhas predileções?
Decidi guardar minhas bolachas de Django num armário chaveado e passei a ouvir apenas dixieland. Foi um verdadeiro festival de Jelly Roll Morton, Louis Armstrong, Sidney Bechet e Muggsy Spainer. Era uma forma de me vingar de Woody Allen: apropriar-me dos jazzistas que ele amava e usava na trilha sonora de seus filmes.
Não funcionou. Semanas depois já estava ouvindo, além de Django, o seu equivalente no violino Stéphane Grapelli.
De 99 para cá, minha mania pelo manouche só se avolumou. Muito porque os descendentes de Reinhardt cresceram em progressão geométrica. Pipocaram festivais de jazz cigano pelos quatro cantos e criativos grupos surgiram às mancheias.
O último que desencavei, pasmem, chama-se Hot Club de Piracicaba. E não desonra em nada o mestre. Gravaram até Tico-tico no fubá à maneira zíngara.
Eu não duvido nada que Woody Allen coloque mais essa minha descoberta numa produção cinematográfica.
Mas se o filme fosse rodado inteirinho em Piracicaba, dessa vez eu o perdoaria.
*Publicado no jornal O Estado de São Paulo