por Ricardo Araújo Pereira
Que toda a gente queira a mesma coisa ao mesmo tempo é uma ocorrência bem pouco frequente
Não há exagero nem sentido figurado aqui, é literal: as esperanças do mundo inteiro estão colocadas num frasquinho que tem uma aguadilha dentro.
Derrama sobre nós tua aguadilha, frasquinho! Que teu poder se faça sentir no nosso interior, aguadilha!
Admito que não sejam os desejos mais belos, ou os mais poéticos, mas são os de todos os habitantes do planeta. Que toda a gente neste mundo queira a mesma coisa ao mesmo tempo é uma ocorrência bem pouco frequente —e, no entanto, quando finalmente estamos todos unidos num desejo, o que a humanidade quer é a aguadilha de um frasquinho.
É um final bizarro para um ano bizarro, como suponho que teria de ser. Normalmente, nos finais de ano, desejamos paz —mas neste queremos que chegue o momento em que a nossa carne vai ser trespassada por um ferro; desejamos saúde —mas, desta vez, ansiamos por sermos inoculados com um vírus; desejamos amor —mas primeiro queremos a aguadilha. A aguadilha é que é o salvo-conduto neste ano para o amor, a saúde e a paz.
As televisões têm acompanhado com interesse e minúcia a chegada dos frasquinhos a cada país. A aguadilha, como as melhores iguarias, é, além de preciosa, delicada e frágil: precisa de ser mantida à temperatura certa, caso contrário pode estragar-se.
Os enfermeiros são agora profissionais de saúde e sommeliers. Continua a não haver, porém, produção poética acerca da vacina.
Mesmo este não posso dizer que conheça, uma vez que Stulli o escreveu em latim, língua que não domino, e é difícil encontrar traduções competentes. Mas o desinteresse dos poetas é estranho.
Falam muito do amor, que opera dentro de nós e nos salva, mas descuram a vacina da Pfizer, que também opera dentro de nós para nos salvar.
E, ao que me garantem os especialistas, assim que os planos de vacinação estiverem concluídos nos países, as comportas que a pandemia fechou vão abrir-se, e as pessoas vão saciar uma sede que adiaram durante muito tempo, e os anos 20 deste século serão dominados pelo mais licencioso amor —que, por feliz coincidência, é a modalidade de amor que eu prefiro.
*Publicado na Folha de S.Paulo