por Thea Tavares
Sabe aquela sequência cinematográfica em que a gente descobre o que aconteceu com os personagens de Vingadores que foram desmaterializados após o estalar de dedos na luva incrustada de joias do infinito na mão do malthusiano vilão do universo, o Thanos? Eles tinham sido transportados para uma espécie de dimensão paralela. Passaram-se cinco anos, mas, para eles, é como se tivesse sido apenas uma fração mínima de tempo. Com o “blip”, reapareceram nos mesmos lugares em que estavam quando sumiram cinco anos antes.
Em meio a estranhamentos e readaptações, metade da humanidade precisa, como missão imediata, encontrar seu lugar de volta no mundo. Tenho a sensação de que essa é justamente a metáfora de 2020. Logo depois da gente ter escapado do susto de uma terceira guerra mundial, na virada do ano passado para este, acordamos blipados no Natal, a poucos dias de 2021. Desmaterializamos, de repente, aquela realidade anterior e habitamos (ainda!) o mundo da pandemia causada pelo novo coronavírus. Sem um plano eficaz e bem elaborado para o retorno (como se deu ao longo de todo o processo), tudo vira motivo para a antecipação dessa volta por iniciativas e impulsos mais pessoais do que fruto de ações coordenadas por algum núcleo pensante ou sensato das nossas autoridades negacionistas e boicotadoras dos apelos e comandos dos super herois da humanidade.
Mas, bola pra frente! O que aconteceu com a gente antes do blip? Que dimensão paralela foi essa que habitamos numa gestação de nove meses até este instante? Como sobrevivemos e que bagagem carregamos? Entre as coisas mais malucas, inusitadas e dolorosas que aconteceram, há inúmeros momentos gratificantes e esclarecedores, definidores dos próximos passos nessa caminhada. A começar pela vida – se você está imerso nesta leitura, a vida é seu primeiro motivo para ser grato -, que presentes você recebeu em 2020? Já se fez essa pergunta? Eu encontrei pessoas. E vivo citando uma frase genial do Gonzaguinha, que me vem sempre à lembrança em reflexões assim: “os caminhos do coração – em alusão ao título de uma das canções dele – são as pessoas”.
A primeira delas, foi diante do espelho. Era como se a visse, em repetidas ocasiões, pela primeira vez. Aos poucos, aquela imagem foi ganhando uma familiaridade tamanha e se tornando mais e mais simpática a cada encontro. Por vezes, nas nossas conversas e troca de sinais, ela ouvia e, em outras, só falava. A gente se alternava entre quem ensina e quem aprende com quem. E esse foi o real ponto de partida para o encontro com as demais, ainda que em isolamento. Fazem parte desse universo inúmeras pessoas com quem talvez jamais chegasse a esbarrar nos “corres” do velho normal. Vai saber! Mas não posso me queixar dos laços de amizade e das afinidades construídas e reforçadas no intervalo de sobrevivência dessa dimensão paralela. Hoje, tenho compromissos e responsabilidades estabelecidos junto a pessoas com as quais nunca me encontrei na chamada vida real. Isso faz bater uma espécie de ansiedade com relação aos estudos mais aprofundados que virão sobre nossos comportamentos nesse período compreendido entre o estalo e o blip, entre ser desmaterializado e começar a vislumbrar um retorno – pós vacinação em massa – às atividades presenciais, táteis, interações palpáveis e às aglomerações.
Pollyanna aqui quer concordar com o Lulu Santos e insiste em ver “a vida melhor no futuro”. Agora, mais do que nunca! Esse tempo, com todas as suas dores, angústias e perdas, pareceu a estação sabática e paciente de um corpo que pede, a fim de se recuperar, um pouco mais de calma e um pouco mais de alma. Lenine que está igualmente certo: a vida é tão rara! E surpreendente!
Sem muitas respostas, apenas constatações e delírios… O blip do Natal de 2020 nos convida à coragem que essa vida rara tanto cobra de diversas formas e a seu tempo. Com a sabedoria de, desta vez, sermos destemidamente leves, positivamente resistentes, oportunamente afirmativos e audaciosamente fieis aos aprendizados adquiridos na desmaterialização instantânea daquela realidade anterior. Porque a retomada, sem essas avaliações e mudanças, perde toda a sua razão de ser. Resumiria-se aos atos de “aparatar” e de “desaparatar”, mas isso, daí, já é assunto para a abordagem de outra sequência fantasiosa e metafórica do nosso cotidiano. Você sabe qual!