por Fernando Muniz
I
O rapaz, dezoito anos recém feitos, desembarca do avião, pega a mochila, poucas roupas e uns trocados e sai atrás do que as brochuras de turismo prometem.
No desembarque nota outros estrangeiros, de todos os cantos, quase sempre homens, à procura do que não conseguem nos seus países; ali tudo é farto e por um preço mínimo. Mas aquele comércio não o atrai. Moças muito pintadas e boates embotadas pela música eletrônica o deixam atordoado e ansioso.
Em suas andanças por aqueles países, cujas línguas entende pouco, encontra uma pequena vila de pescadores, cravada entre praias de acesso difícil e onde o contato com estrangeiros é quase nenhum. Isso não impede o povo do lugar de recebê-lo sem reservas, e, em troca de um teto e comida, ele passa a cuidar da horta comunitária.
Céu sem nuvens durante o dia e cheio de estrelas à noite, a vida ali se resume a pequenas preocupações; pescar, adivinhar o futuro de acordo com o ritmo dos ventos e das marés, ver as plantas da horta crescerem, aquele ritmo aos poucos espanta a secura de sua vida até então.
Mais alguns meses, logo após a colheita de tomates, melancias e abacaxis, chega a hora de ir. A vila, plena de carinho por aquele forasteiro e toda iluminada, entra em festa na sua despedida.
Ele se põe a caminhar de sandálias de couro, roupas de algodão, cabelo e barba compridos, uma trouxa de roupa e um pequeno boneco de pano, presente da criançada do vilarejo, que o tratara tão bem por ter feito as sementes virarem frutas.
II
Após vagar ora em albergues, ora em bancos de praça ou debaixo de pontes, o rapaz chega à casa de uns parentes distantes, em uma cidade grande, modernosa, plena de linhas retas, previsíveis, imersa em cores pálidas e povoada por descendentes de europeus, desconfiados daquele andarilho de olhos claros, roupas puídas e sandálias gastas.
Seus parentes, tão gordos e rosados, a viver em casas imensas, cheios de serviçais, orgulhosos de suas viagens e automóveis, oferecem a ele um jantar de rei, cheio de fausto e boas maneiras. Mas a impressão que tem é de que o tratam feito animal exótico, a ser exibido para os amigos importantes daquele lugar sombrio.
O jantar, os parentes e as impressões que lhe causam o fazem sofrer. Diz uma desculpa e se põe a caminhar a esmo pela noite sem nuvens, após declinar o táxi que lhe ofereceram com tanta insistência. “É perigoso alguém como você andar a pé por essas ruas”!
Caminha livre de quaisquer amarras, o que traz uma sensação boa de despertar, melhor, de plenitude. Suas ideias começam a se encaixar uma à outra, sem qualquer trava ou condicionamento. Nada mais é impossível, nada mais o prende ao passado ou futuro; o que importa é o que acontece agora e o que fará logo a seguir.
III
O rapaz, feito homem após vagar meses a fio por aquela terra estrangeira, chega a uma praia de areia fina e restos de escunas, paquetes, cargueiros e pirogas, que dormitam na areia, a testemunhar o movimento implacável das marés. Ali restam em paz, não perturbada pelo caminhar do andarilho.
Mas o que significam aqueles destroços? O rapaz fica intrigado com as formas das carcaças, lambidas pelo mar e pelos ventos. Será que pretendem lhe dizer alguma coisa ou dar algum aviso? Mas não é hora de perturbar o sono daqueles retalhos com pensamentos menores. O rapaz contém suas especulações e apenas admira os navios, enquanto sente, descalço, a areia macia.
Rochedos imensos engolem a praia, altaneiros, sem se importar com a sina de, aos poucos, serem lixados pelo ir e vir das marés, em um ritmo constante, perene, monótono, eterno e inflexível, até se tornarem formas cinzentas e arredondadas, desprovidas de qualquer potência ou gravidade.
IV
O rapaz escala os escolhos e passa a seguir uma trilha que sobe suave, feita por cabritos, a serpentear o morro. A essa altura um vento varre a encosta, transformando-se, aos poucos, em brisa, que conforta o rapaz. Ele não percebe estar sendo seguido a pouca distância, por certo não outro menino ou rapaz, nem se poderia dizer um homem; na verdade um velho, cabelos brancos a cobrir a pele curtida pelo sol, de alguém que há muito esqueceu a razão de vagar por aí e, mesmo assim, caminha em paz.
O rapaz se aproxima do velho e o cumprimenta com a cabeça. Sossego é o que não enxerga entre aquelas rugas, sulcos e cabelos desgrenhados; um ser inusitado, e, o que é pior, prestes a trocar palavras com ele. O rapaz, há meses sem falar, pouco a pouco deixara de compreender palavras e frases ou, mesmo, orações, muito menos sentenças. A voz não lhe faz falta nem possui qualquer serventia.
E agora? O rapaz pergunta a si mesmo. O que farei? Passa a se remoer enquanto o velho retribui o aceno. Tudo indica que ele também abandonou o costume de falar e, assim que se postam um frente ao outro, buscam se compreender para além dos ruídos.
Naquele momento ambos se reconhecem em suas sinas, de andar a esmo sempre à procura, nunca a encontrar coisa que valha parar a caminhada, e, desse encontro, tiram o conforto de não estarem a sós neste mundo. E ficam prostrados um frente ao outro até o dia seguinte, quando se despedem com leves acenos. Ambos sabem que têm e terão um ao outro, dali por diante e para todo o sempre.
Essa certeza e por ser possível um futuro encontro, suas respectivas jornadas se tornam completas e, porque não, com um início de sentido.
V
O encontro com o velho andarilho deixa o rapaz eufórico; afinal, sua crença de que, ao se afastar do mundo chegaria perto de si, provou-se correta, ou melhor, há outros que buscam o mesmo, crença que anima seus passos montanha acima e, apesar de a vegetação aos poucos mudar de cor e escassear, ele suportará com alegria o frio intenso e o ar mais e mais rarefeito, a tornar a respiração áspera, enquanto os raios de sol continuarem a segui-lo, mesmo que tênues.
O rapaz pouco se importa com a repulsa da natureza, pois seu coração está cheio de uma convicção digna de homens donos de si e do seu destino. Afinal, depois de tanto vagar por florestas, rios, mares e morros encontrou algo, ou melhor, encontrou a si e o seu destino, que se insinua grandioso, a ponto de nada mais ter razão de ser se não estiver subordinado àquela plenitude, obtida com a percepção de autoconhecimento trazida pelo andar errante durante tantas luas, nada podendo interromper o seu caminho, pois qualquer obstáculo será superado por aquela força estranha, bela e descomunal que o rapaz, tornado homem, encontrou dentro de si.
Mas ele, em suas elucubrações deixar de perceber que seus passos, mais uma vez, são vigiados. Não por um igual, ou portador de alguma mensagem redentora, mas sim por uma fera primeva, coberta de cicatrizes, dotada de um pelo grosso e escuro, adaptado às intempéries, ali, em tocaia, atrás de alimento, tão raro nesta época do ano, ainda mais naquelas alturas.
A boca da fera começa a salivar, seus instintos se aguçam com aquela figura desprotegida, a caminhar sem proteção pela trilha há muito abandonada, e, enquanto o rapaz – que se acredita um homem – continua a se inebriar com as suas convicções, pouco a pouco a fera se aproxima por entre as árvores e arbustos.
Agora só falta o bote final. A fera pisa em um graveto minúsculo, cujo estalo desperta o rapaz de seu torpor, dando-lhe tempo tão-somente de pular para o lado enquanto a fera cai sobre a trilha com um urro descomunal. Num gesto reflexo, fruto do terror, atira um seixo entre os olhos da fera, que não esperava reação alguma daquele ser inusitado. O pedregulho não só a atinge como, de sua testa, passa a escorrer um filete de sangue, que turva a sua visão e a engolfa em um ódio surdo contra aquela insolência.
A fera trata de investir suas energias e despedaçar a presa, mas durante os segundos em que busca compreender o imprevisto o rapaz – novamente um garotinho, tomado pelo pânico – consegue escalar os rochedos próximos à trilha, com uma agilidade que nunca tivera em sua vida, a ponto de rasgar as mãos e dedos nas pedras pontiagudas.
O terror é tamanho que o rapaz só se dá conta dessas feridas após ter subido a escarpa até um ponto em que a fera não pode alcançá-lo.
Passado algum tempo seu coração se acalma, bem como o sangue volta a correr em um ritmo normal. Ele retoma o controle sobre os seus sentidos e se põe a pensar. Como não viu a fera chegar? Por que não enfrentou aquele animal? Desde quando escala montanhas? Perguntas para as quais o rapaz não encontra explicação, enquanto examina as feridas. Aos poucos surge uma sombra que engole a pedra, fustigada pelo vento gelado, quase a congelar a sua dor. Medo e sensação de desterro o invadem, diante do completo isolamento e desamparo em que se encontra.
O sol se põe.
VI
Depois de tanto cogitar respostas e só encontrar perguntas o rapaz conclui que sua fé vale muito pouco, ou melhor, de nada vale naquela situação, mesmo que suas convicções o tenham trazido até aquelas alturas. Agora elas não lhe dão qualquer sinal do que fazer, pois a fera continua a rondar a base do rochedo, dando para ouvir sua respiração pesada e impaciente, enquanto ele, ali, trepado naquela pedra, sem abrigo ou comida, exposto ao vento cortante com pouco oxigênio, só tem como companhia chavões inúteis.
Uma conclusão o deixa consternado: para sair dali não adianta responder perguntas, por mais pertinentes que, tanto elas como suas respostas, possam soar; ele precisará enfrentar a fera e, para tanto, deve abandonar aquelas ideias.
Nesse momento vêm à sua mente os navios e barcos esfrangalhados na praia, testemunhas de tantos fracassos, que chegaram ali sustentados por razões claras e compreensíveis, as quais se mostraram sem qualquer serventia, nem afastaram aquelas naus e seus tripulantes para longe dos escolhos e arrecifes. Compreende, então, o que aqueles destroços testemunham: as ideias sublimes e projetos grandiosos viraram pó e cacos e restolhos. E só.
A lembrança daqueles fragmentos, bem como as dúvidas que não param de lhe fustigar a mente, ao invés de causar mais desespero ou dor passam a lhe dar estímulo.
Todas aquelas imprecisões, suspeitas, ambiguidades e infortúnios lhe ocasionam menos um bem-estar ou alívio, feito toda aquela fé que por vias tortas o trouxera até ali e, mais, um impulso ao rapaz, para que saia daquela pedra agreste e desça logo de uma vez, mesmo com a fera a espreitá-lo, mesmo que sofra com o frio, o vento, a fome e a febre que começa a lhe turvar a razão, ou, mesmo, as dores lancinantes nas suas mãos e pés, que não lhe dão qualquer trégua e tornam a empreitada incerta, ou, porque não dizer, de resultado impraticável, quase impossível.
O rapaz, pela primeira vez, reconhece que não há outra alternativa senão ir ao encontro da fera, momento em que deixa para trás tanto o menino curioso pelo mundo como o homem pleno de certezas e se enxerga, em definitivo, senhor dos seus passos.
VII
A fera não aparece e, mesmo o som da sua respiração sumiu, o que dá ao rapaz um alívio momentâneo e lhe permite descansar alguns instantes no sopé da pedra, ao término de uma descida terrível, durante a qual suas feridas não cicatrizadas se abriram ainda mais.
A febre aumentou, causando calafrios intensos, além de tornar seus raciocínios erráticos. Não sabe se, de fato, desceu da pedra, ou se ainda está lá em cima ou, mesmo, se a fera o devorou, ou, se não morreu, não sabe dizer por que a sensação de fome passou, visto há dias não come ou bebe coisa alguma.
Só que nada disso agora faz qualquer diferença. Os raios de sol banham a colina e lhe afagam as feridas e arranhões. Não quer mais fazer o caminho de volta à planície ou à praia, nem à vila que há tanto deixou para trás, muito menos deseja ver o velho andarilho, seus pais ou parentes. Mas isso é secundário, porque sempre estarão ali, com ele e para onde ele for.
Ele sente que nunca mais retornará a esses lugares ou pessoas, o que não significa dor ou tristeza. Apenas uma sensação de desamparo o persegue, mas é passageira. Pouco a pouco o mal-estar cede ante o calor dos raios de sol que o abraçam, com aconchego e transcendência.
E a fera retorna à trilha.