de Fernando Muniz
Hora de fazer a triagem das coisas do pai. Contas de luz e água de anos atrás, jogos e mais jogos de chaves-de-fenda, roupas fora de moda, fotografias antigas. Tudo para o lixo?
Na única estante ainda não desmontada ele encontra uma coleção de fitas cassete, nas suas embalagens originais, salvo uma delas. Mestres da Música Universal, compradas pelo pai em uma banca de revistas. Junto com o envelope de cada fita veio um fascículo, que conta a biografia do mestre. O filho sente remorso, ao folhear o único fascículo aberto.
Decerto o pai pensou que teria o que conversar com o filho, então estudante de direito, primeiro da família a entrar em um curso superior. Cultura de verdade, coisa que deveriam conversar nas faculdades, segundo o dono da banca de revistas.
“Filho, olha só o que o pai trouxe para a gente escutar”!
O remorso aumenta. Ele nem dera bola à tentativa do pai. Preocupado com os exames de final de ano, murmurou alguma coisa e se fechou quarto, protegido em seu novo mundo, em meio aos livros ensebados da faculdade.
O pai, desconcertado com aquele desprezo, vai para a sala, desembrulha a primeira fita cassete em que põe as mãos e coloca para tocar. Uma melodia suave, bonita e melancólica, enche a sala e o leva dali, de suas preocupações, para longe do filho ausente e da lembrança da esposa, não mais ali. Sente as lágrimas escorrerem, enquanto o filho, atraído pela música, observa tudo atrás da porta. Poderia ir lá junto ao pai, confortá-lo; mas fica escondido, sem dar o passo adiante. E volta para os livros.
O filho coloca a fita do fascículo aberto no toca-fitas, rezando para que ele funcione e que a fita não esteja corrompida.
Tudo dá certo e a música torna a encher a sala, tantos anos depois, ecoando entre sacos de bugigangas e móveis fora do lugar.
E ele chora.