11:4714 anos de isolamento

Da janela do meu escritório, vejo um bairro metido a besta em Curitiba. Claro que tem nome estrangeiro: Jardim Los Angeles. Estou do lado de cá, de frente para o crime, como costumo falar, ou seja, a tela do computador e o telhado dos casarões, há 14 anos. Vejo o povo reclamando do isolamento de alguns dias, olho para a foto dos meus pais, e digo em pensamento: “Como é que pode, né?”
Já tive encontro com a morte de várias maneiras. Não gostei muito. Faço piada disso também porque sobrevivi. Álcool e drogas. Há 25 anos tomo suco e água mineral – com gás, porque preciso ter algum prazer.
Acho que o cramulhão não quis me aceitar da última vez em que fui lá bater na porta do inferno. Mandou de volta porque sabia que eu iria pentelhar demais. Voltei para a vida – e o bom humor. Por que iria desafiar agora, quando estou na descendente da vida, o tal do corona? Isso é coisa de maluco burro – esse que todo dia está na TV, por exemplo.
Continuei aqui na minha rotina desde que me presentearam com um blog e descobri que as novas redações são parecidas com velórios. Desse silêncio estou fora, mesmo porque sou do tempo da barulheira, das brigas, da euforia por ter conseguido uma boa reportagem, enfim, essas coisas de velho.
Vim pra casa e não saí mais. Sou um privilegiado, mesmo morando em Curitiba, a cidade para onde me despacharam em 1978. Meus amigos de Sampa já ouviram várias vezes a história de que demoro 10 degraus de uma escada para chegar ao trabalho – é o tempo que levo da porta da cozinha para o cafofo, que fica em cima da garagem da casa.
Para quem nasceu num cortiço na Vila Alpina, acho que evoluí na vida. Vejo o Los Angeles e posso ir a pé ao Batel, bairro dos curitibanos que se acham (por quê? Sei lá…). Sei que isso tudo não me incentiva a sair da minha área, do meu confinamento, do meu isolamento que nem é tanto, mas agora, sim, porque minha mulher, por algum motivo que desconheço, me protege mais do que mereço.
Outro dia ela ouviu lá do nosso quarto eu tossindo. Subiu correndo. Eu tinha engasgado com uma bala de goma. Ela sorriu. Eu ri. Vida que segue.

*Publicado no livro ‘Escritos da Quarentena’. O exemplar impresso pode ser pedido por email no [email protected]

*A entidade beneficiada com a venda dos exemplares é o Conselho da Comunidade da Região Metropolitana de Curitiba

6 ideias sobre “14 anos de isolamento

  1. Rosemeiry Tardivo

    Que belíssimo texto Zé Beto, com o velho e bom estilo. Gostei demais. Verdadeiro. Pra quem já passou perto da medonha tantas vezes, e venceu, seria burrice dobrada afrontar o coronavírus. E além do mais a cidade e a vida estão no teu cafofo. Artigo sensível, engraçado e verdadeiro. É o Zé Beto sendo genuinamente Zé Beto.

  2. swissblue

    Belo texto. Eu tambem tenho alguém que me protege mais do que mereço. Somos felizardos. Voltei ontem a Curitiba por alguns dias. Encantadora, porém triste ver tantos negocios fechados, tantas placas de aluga-se, vende-se. Triste mesmo é ver a grande maioria na rua com suas mascaras no pescoço. Como bem disse a moça no avião, custa colocar direito a mascara. Como diz o dono do blog, vida que segue. Bom estar aqui mesmo que por poucos dias.

  3. Célio Heitor Guimarães

    Sim, este é o verdadeiro Zé Beto, mestre de e exemplo para todos nós. Já fui atrás do “Escritos da Quarentena”.

  4. Fernando Muniz

    Que crônica bacana! Um xeque-mate na burrice, crueldade e pequenez dos últimos tempos.

  5. SERGIO SILVESTRE

    Pois é amigo virtual,pra que tanta ansiedade para conhecer tanta coisa diferente se temos uma tela diante dos olhos mostrando tudo,até o nascimento de uma estrela.Algum dia estaremos numa jangada viajando pelos confins do Universo e teremos uma eternidade para conhecer tudo.

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