por Paulo Roberto Ferreira Motta
Se a vida do Sebastião estava boa, a do JB estava terrível. No dia 13 de dezembro, o Costa e Silva editou o AI-5. No dia 14, o JB soltou a mais antológica das capas de um jornal brasileiro em todos os tempos. Para eventuais curiosos, comparecer no site Jornal do Brasil Acervo Digital, digitar a data de 14/12/1968 e ler. Na redação do JB, na manhã do dia 14, as coisas estavam estranhamente calmas. Na hora do almoço, chegaram dezenas de caminhões do Exército, o batalhão invadiu, sob as ordens dum coronel, a redação. O coronel tinha uma lista em ordem alfabética e ia chamando um a um pelo nome. O sujeito se identificava e era imediatamente algemado. O primeiro da lista foi Alberto Dines. O segundo, Antônio Callado. Chamaram mais de trinta e todos foram presos. No dia 24 de dezembro, soltaram metade. No dia 31 de dezembro, soltaram a outra metade. Só Dines, provavelmente por ser judeu, e Callado, por alguma antipatia dum general, ficaram presos no Natal e no Réveillon. Só seriam libertados em meados de janeiro de 1969. O Callado saiu alguns dias antes do Dines. Os coronéis permaneceriam por muito tempo dentro da redação. Com seus lápis vermelhos, censuravam tudo o que não gostavam. Cada redator tinha que reescrever umas cinco vezes cada matéria. Algumas eram vetadas e nem com várias outras redações passavam. Até no caderno B a censura prévia corria solta. Nesta época, o Sebastião descobriu o Chico Buarque de Hollanda em Paris, fez uma reportagem e mandou. A matéria foi integralmente vetada por um coronel. O editor do caderno B, todo encagaçado, mandou um telex para a Sucursal de Paris avisando que Chico, Caetano, Gil e Geraldo Vandré estavam no index. Não era para mandar nada envolvendo o nome deles.
Uma manhã, o Sebastião chegou para trabalhar no JB, pegou o Le Monde e leu na capa: a mais famosa galeria de arte de Paris iria trazer dezenas de quadros da mais recente produção de Salvador Dalí. Sebastião pensou logo nos cem dólares que ganharia. Horas depois, chegou o esperado telex: o editor do caderno B queria ampla reportagem e se possível uma entrevista exclusiva com o Dalí. O editor tinha ficado educado depois de vários esporros do Dines. As coisas, infelizmente, não iriam sair como o Sebastião imaginava.
Sebastião se apresentou na famosa galeria de arte e pediu uma credencial de imprensa para a vernissage. Negativo, credenciais de imprensa eram apenas para os cinco maiores críticos dos principais jornais de Paris. Nem o correspondente do The Times tinha conseguido uma. Não se dando por vencido, pediu um convite. Negaram de novo. Disseram que os convites eram exclusivos para nobres falidos, banqueiros, capitães de indústria e a alta burguesia de Paris, categorias em que o nosso valoroso repórter não se enquadrava. Os primeiros seriam convidados para dar um charme na vernissage, os demais para preencherem volumosos cheques pelos quadros que comprariam.
Entristecido e lamentando os cem dólares que deixaria de ganhar, Sebastião foi para o Instituto de Cinema sem ao menos almoçar. Na hora do recreio, enquanto mastigava um croissant, comentou com os colegas a lástima que tinha sido a sua manhã. Um cambojano, colega de turma do Sebastião, disse que não havia problema algum. Trabalhava nas horas vagas numa empresa de eventos que serviria o champagne e os canapés na mostra do Dalí. Como era coisa grande, estavam contratando extras. Prontificou-se a levar o Sebastião na manhã seguinte para fazer o contrato e tirar as medidas para o uniforme. Sebastião ergueu os braços para o céu e se lembrou da conferência do Ionesco.
Salvador Dalí adorava dar entrevistas. Homossexual confesso, estava no terceiro casamento. Com a segunda mulher, que era irmã da primeira, teve um filho. A terceira e última mulher era Gala, uma russa refugiada do comunismo, que se chamava, na verdade, Elena Ivanovna Diakonova, quinze anos mais velha que Salvador Dalí. As más línguas diziam que Dalí e Gala jamais tiveram uma relação sexual. As boas diziam que disputavam os mesmos garotos de programa. Quando Gala morreu, Dalí se encerrou no seu castelo em Figueres, sua cidadezinha natal, próxima a Barcelona, e só saiu para ir ao cemitério.
Não pela opção sexual, que isso não tem nada a ver com o caráter das pessoas, mas Dalí deixava muito a desejar sobre as atitudes que tomou na vida. Quem conta é Luís Buñuel, nas suas memórias. Filhos de famílias abastadas, o aragonês Buñuel, o catalão Dalí e o andaluz Lorca foram mandados pelos seus pais para um famoso Ginásio em Madri, dirigido por severos padres jesuítas, em regime de internato. Na primeira semana de aulas, ficaram amicíssimos e mexeram os pauzinhos para ficarem no mesmo dormitório. Na primeira noite, Buñuel, que era, na época, confessadamente homofóbico, descobriu que Dalí e Lorca tinham um caso. Começou a fazer um escândalo. Dalí se deitou na cama pôs o travesseiro no rosto e começou a chorar. Lorca, o mais centrado dos três, mandou Buñuel e Dalí pararem com a confusão. Se alguém ouvisse e contasse para os padres, seria expulsão na certa. Buñuel parou de gritar e Dalí de chorar. Mais calmos, os três confabularam baixinho a madrugada inteira. Chegaram a um acordo: Buñuel, depois da última aula do dia, sairia pra rua, o que era permitido pelos religiosos, e voltaria para o dormitório pouco antes das onze da noite, que era o horário estabelecido pela direção do ginásio para o retorno. Foi nessa época, perambulando pelas ruas de Madri, que Buñuel se viciaria em charutos, álcool e bordéis, não necessariamente nesta ordem, pelo resto da sua existência.
Os três deram certo na vida. Foram os principais expoentes da famosa Geração de 27 das artes espanholas. Buñuel como cineasta, Dalí como pintor e Lorca como poeta e dramaturgo. O primeiro filme de Buñuel chamava-se “Um Cão Andaluz”, roteiro a quatro mãos com Salvador Dalí, tido pela crítica como a película fundadora do cinema surrealista. Com o sucesso do filme, foi viver em Paris. Dalí foi atrás e Lorca continuou em Granada, cidade onde nasceu. Chegando em Paris, Dalí foi procurar Pablo Picasso. Disse, na apresentação, que tinha ido lhe visitar antes de ir ao Louvre. Picasso disse: “Fez bem em vir aqui antes!” Dalí lhe mostrou uns quadros e Picasso ficou vivamente impressionado com a arte do conterrâneo e lhe deu um empurrão na carreira, apresentando-o para as pessoas certas em Paris. Com a eclosão da Guerra Civil espanhola, Buñuel e Lorca tomaram o partido dos republicanos. Dalí, que se dizia comunista ou anarquista, conforme o interlocutor, ficou em cima do muro. Antes da guerra civil terminar, Lorca foi fuzilado pelas tropas de Franco, em Granada. As versões sobre a morte de Lorca variam: uma corrente defende que Lorca foi fuzilado por ser tido como anarquista ou comunista. Outros, dizem que não era verdade. Lorca nunca pegou em armas, era apenas um democrata contra a monarquia, e, eventualmente, escondeu um ou outro amigo anarquista ou comunista. Outra corrente afirma que Lorca foi fuzilado em razão da homossexualidade. Algumas pessoas negam. Os franquistas, pelo menos durante a guerra, não se importavam com isso, alguns soldados e oficiais de suas tropas eram gays. Uma terceira versão, com menos adeptos, sustenta que foi um crime passional. Um dos comandantes da falange de Franco em Granada teria se apaixonado por Lorca. Não correspondido, mandou fuzilar o poeta. No final da guerra, Dalí voltou à Espanha e virou garoto propaganda do franquismo, para desespero de André Breton, principal expoente do surrealismo. Com a invasão da França pelos nazistas, Buñuel fugiu para os Estados Unidos. Já era casado. Conseguiu um trabalho muito mal remunerado no MoMa (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque). Quando ficou sabendo que Lorca havia sido fuzilado, Dalí não verteu uma lágrima e ainda disse: “Quem mandou se meter com os vermelhos!”
obviamente continua amanhã