7:49NELSON PADRELLA

DIÁRIO DA PANDEMIA

(*) Ouvi perfeitamente o vizinho sussurrar com voz de cetim: tudo bem se eu botar só um pouquinho? Isso foi, faz o quê, nem um mês. Fiquei com aquilo encucado na cabeça até que apareceu a oportunidade. O vizinho estava saindo ou pra trabalhar ou pra dar um giro. Ele sempre tosse quando respira o ar do corredor e isso me alertou que era ele. Mordido pela curiosidade perguntei pro cara, pela porta entreaberta, se no dia assim-assim, o que que ele quis dizer para a patroa com botar só um pouquinho. Podia ser açúcar no café, botar só um pouquinho de canela na canjica, enfim, um mundo de possibilidades. O cara me olha de alto a baixo umas três vezes e sai fora sem nem dar bom dia.

(*) O lance de conviver confinado talvez seja exatamente isso: conviver com finados. No começo não me foi fácil receber a visita dessas pessoas passadas para o outro lado. Chegavam medrosas de estar me incomodando; mas, não me incomodavam, eu até me sentia grato. Logo, não podia mais imaginar minha vida sem a presença dos mortos para preencher o vazio das minhas madrugadas. E é sempre madrugada, mesmo nos dias de sol. Não demorou para que começássemos a trocar frases, e logo ficamos todos amigos. Agora chegam em bandos, confiadas, brejeiras, seja lá o que isso signifique. Perguntam coisas, querem saber quem é o Presidente do Brasil, e eu sei lá! Mas tudo tem limite! Não sou obrigado a dividir minha cama com essas três molecas vindas sei lá de onde.

(*) – Você é um burro! – disse o orgulhoso pai. O filho, ouvindo aquilo, encheu-se de brios e faltou um isso pra soltar um zurro. Já não era mais o burrinho da família, e nem o burraldo como era chamado pelos coleguinhas. Agora era um burro completo, com todas as liturgias do cargo. A historinha termina aqui, não caberia dizer que também havia um pinto que estava todo orgulhoso da mãe ser uma galinha. Ah! E tinha o cãozinho, feliz porque a mãe era uma cadela. E tudo se passava assim, os personagens felizes por serem quem realmente eram. Essa história era para ter uma moral que justificasse o texto, mas não sei.

FRASE QUE ROLOU: Deem-me uma alavanca e moverei mundo. Deem-me uma pistola e sairei dando tecos por aí. 

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