6:45Assim nasceu, viveu e morreu o Nicolau – IV

por Paulo Roberto Ferreira Motta (*)

O Nicolau deixou descendência logo depois de nascer. A Imprensa Oficial de Minas Gerais lançou o seu rebento alguns meses depois. A Imprensa Oficial da Paraíba veio atrás. Depois Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. Eram belíssimas publicações, mas a mídia do eixo Rio-São Paulo só teria olhos para o Nicolau.

Nos dias em que o Nicolau saia encartado, o Wilson Bueno ia a campo para pesquisar a aceitação do mesmo. Provavelmente sem ter dormido, depois de perambular pelos bares, madrugava num terminal de ônibus escolhido ao acaso. Postava-se ao lado da banca de jornal, como quem não quer nada, e ficava de mutuca. Quando um comprador abria o jornal ainda na banca, tirava o Nicolau e guardava com carinho, o Wilson ia a loucura. Certa feita, um jovenzinho, muito pobre, mal vestido, chegou na banca e comprou a Tribuna, que era o jornal de menor preço de Curitiba. Retirou o Nicolau e devolveu a Tribuna ao dono da banca. O Bueno perguntou porque ele havia feito aquilo. O jovenzinho disse que só queria ler o Nicolau, não perdia um número. O Wilson Bueno, com lágrimas nos olhos, abraçou o rapaz e tascou um beijo nele. Como o rapazinho não estava entendendo nada, Bueno explicou quem era. Convidou o rapaz para conhecer o Nicolau e dias depois ele estava lá.

Por uma artimanha do Jaques Brand fui pautado no número 1. Brand me pediu um artigo contra a obrigatoriedade do diploma em Comunicação Social para que a pessoa pudesse ser jornalista. Eu achava a exigência ridícula e inconstitucional. A continuar assim, algum gaiato corporativista poderia inventar uma lei que obrigasse quem quisesse se tornar um escritor a estudar Letras. Tá lá no número 1. Direito à expressão em jornal. Sentei a pua no comportamento dos Sindicatos dos Jornalistas em proibirem quem não era formado em Comunicação Social de escrever para jornal. Sustentava que era um direito constitucional a livre manifestação do pensamento e que a reserva de mercado existente era uma violação de direitos fundamentais. Décadas depois, sob a égide da Constituição de 1988, o STF decidiu pela inconstitucionalidade da exigência. Aproveitei também para criticar os Sindicatos dos Artistas que exigiam diploma em curso de Artes Cênicas para gente que fazia teatro e TV da maior qualidade em todo o Brasil.

O Nicolau saiu nas primeiras horas da manhã do dia 24 de julho de 1987. Antes das 10, recebi um telefonema de um diretor do Sindicato dos Jornalistas do Paraná, que era meu amigo desde os bancos da Faculdade de Direito, protestando e dizendo que o artigo havia caído muito mal no referido sindicato. Quinze minutos depois, toca o telefone de novo. Era uma amiga diretora do SATED (Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos e Diversões). O mesmo queixume. Contei pro Bueno e pro Brand das ligações. Eles disseram que era bem isso que pensaram quando pautaram o assunto. Queriam cutucar todas as onças com a vara curta e evitar, no futuro, que o Sindicato dos Jornalistas atrapalhasse o Nicolau exigindo a comprovação de jornalista formado para os colaboradores.

O número 1, apesar do estrondoso sucesso nacional e internacional, causou uma ciumeira total em parte da intelectualidade curitibana que não se viu contemplada. Aliás quanto mais crescia o sucesso do lançamento, mais e maiores eram as pedras jogadas. Afirmavam que o Nicolau só havia publicado textos de vanguarda, ignorava a Academia Paranaense de Letras e os Grêmios e Centros Literários que existiam (onde as Senhoras das tradicionais famílias curitibanas organizavam saraus para declamar seus poemas, que nem o pior dos parnasianos aguentaria ouvir. Pura naftalina). Diziam que o Nicolau deixou artistas plásticos clássicos de fora e, suprema das idiotices, que os impostos do contribuinte estavam sendo gastos com leitores que não compreendiam os textos, as ilustrações e fotos do Nicolau. Um autêntico desperdício do dinheiro público. Um jornalista chegou a afirmar, na Boca Maldita, que como o Nicolau era um tabloide, não servia nem para embrulhar peixe.

A inveja corria solta. A autofagia se preparava para contundentes ataques. A cada número os ataques se renovavam e multiplicavam. Mesmo que ilustres membros da Academia Paranaense de Letras colaborassem, como por exemplo o Valfrido Piloto e o Valério Hoerner Júnior, as críticas continuavam fortes. O René segurava as pontas e cumpria a promessa de independência ao Wilson Bueno.

Lá pelo número 10, as pressões se agigantaram. O Wilson estava preocupado e se reuniu a sós com o Dotti. Depois de muitas horas, chegaram à conclusão de que o Nicolau precisava de um Conselho Editorial para dividir e pulverizar um pouco a inveja, as críticas e a autofagia. Alguns da equipe se revoltaram e cairam fora, não sem antes publicarem um manifesto nos jornais locais, acusando o Dotti de “censura” por interpostas pessoas. No número 11, nova e aguerrida equipe era comandada pelo Wilson Bueno.

Jaques Brand, acho que no número 3, já tinha deixado o Nicolau, depois de um desentendimento com o Bueno sobre uma pauta. Mas, sempre que solicitado, continuava colaborando. Bueno e Brand, apesar da discórdia, continuaram amigos. Outro que deixou de falar com o Wilson e frequentar o Nicolau foi o Aramis Millarch, depois que o jornal publicou uma colaboração do Sylvio Back. (Millarch e Back tinham uma briga muito antiga, dos tempos em que trabalharam na Última Hora de Curitiba.) Depois, Aramis e Wilson retomaram a amizade. Quando o Nicolau publicava nova colaboração do Sylvio, a história se repetia. Eram alguns percalços aqui e ali que se resolviam sem maiores tragédias.

Alguns, para publicar no Nicolau, usavam os mais diversos artifícios. Um luminar das letras jurídicas (não estou sendo irônico), que depois alcançaria os píncaros da glória (mais uma vez, aviso que não estou sendo irônico), levou pessoalmente um cartapácio de poesias da sua lavra. Acompanhava o volume uma cartinha endereçada ao René Dotti pedindo que os poemas fossem submetidos a apreciação da redação do Nicolau para eventual publicação. Conversa mole. Era queria sim era publicar os poemas sem passar pelo Conselho Editorial e pelo Wilson Bueno. Dotti nem se deu ao trabalho de ler um poema, afinal sua palavra de só conhecer o conteúdo do Nicolau depois de publicado valeu durante os 4 anos da sua gestão, e mandou entregar o grosso volume na redação. Como os poemas não foram publicados, o citado voltou à Secretaria e me perguntou se o envelope havia chegado nas mãos do professor Dotti. Eu disse que sim e que o Secretário tinha mandado o material para a redação do Nicolau. Ele então pediu que eu desse uma sondada com o Wilson Bueno. Cai na besteira de prometer que falaria com o Wilson. Quando ele foi embora, percebi a burrada que tinha feito. Se o Secretário não tinha qualquer ingerência sobre o conteúdo dos números do Nicolau, como eu poderia indagar ao Bueno sobre a não publicação de alguns poemas? Mas, como promessa é dívida, resolvi, dias depois, abordar o Bueno com muito tato. Percebendo a situação e o meu constrangimento, Wilson riu e disparou: “Paulo, li os poemas, eles não são ruins, alguns até são bons. Mas eu recebo dezenas de poemas ótimos e dois ou três excelentes todos os meses e tenho, por falta de espaço, que descartar os ótimos. Como posso publicar um poema bom e deixar de fora um excelente?”. Para minha sorte, o luminar em questão não voltou mais ao assunto. De vez em quando, cruzo com ele e acho que nem se lembra mais da conversa.

Cada vez com mais prestígio nacional e internacional, o Nicolau enfrentava com galhardia a inveja e as críticas. A redação era um ninho de falcões da cultura nacional. O Paulo Leminski aparecia lá com frequência, sempre que ia a caminho do Bar Stuart. Afinal, da Ébano Pereira até o citado bar era uma linha quase reta. O Sóssella, quando estava em Curitiba, sempre dava um jeito de passar por lá. O Sábato Magaldi e sua esposa Edla van Steen, quando vinham frequentemente a Curitiba (a Edla nasceu aqui e tinha parentes), não deixavam de visitar o Nicolau. Ary Fontoura certa vez veio apresentar uma peça em Curitiba e disse nas entrevistas que concedeu que o Wilson Bueno era um dos maiores escritores do país e tinha criado o melhor jornal cultural do Brasil.

A Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) concordou com o Ary e concedeu ao Nicolau o prêmio de melhor jornal cultural do Brasil em 1987. No ano de 1989, a mesma APCA concedeu outro prêmio: o de melhor jornal cultural da década de 80. Ainda em 1989, a União Brasileira de Escritores outorgou a Wilson Bueno o prêmio de Personalidade Cultural Brasileira, graças ao seu trabalho no Nicolau. Em 1994, a IWA – International Writers Association discordou do Ary Fontoura e concedeu ao Nicolau o prêmio de melhor jornal cultural da América. Cada um desses prêmios aumentava ainda mais a inveja e autofagia dos curitibocas inimigos do Nicolau.

Mas as críticas, que embora retumbavam, eram absolutamente injustas e despropositadas. É só passar os olhos pelas edições do Nicolau e ver alguns nomes que colaboravam com o melhor jornal cultural, não do Brasil (como sonhava o Wilson Bueno), mas da América, para ver o despropósito delas e inverdades que eram assacadas contra ele.

(*) Paulo Roberto Ferreira Motta é advogado, procurador do Estado e foi chefe de gabinete do então Secretário da Cultura René Dotti.

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