por Cristina Padiglione, na FSP
Televisão pode até perder fatia de público, mas jamais perderá a soberania conquistada ao longo de 70 anos
Na hora em que a TV brasileira faz sete décadas, alguns de seus mais famosos representantes estão pela primeira vez sem emprego fixo depois de mais de 40, 50 anos.
Saber que Tarcísio Meira, Glória Menezes, Antônio Fagundes e Renato Aragão não são mais “artistas da Globo” ainda soa estranho, mas não faz mais sentido para a emissora ostentar uma folha de pagamentos onerosa, enquanto serviços de streaming como a Netflix direcionam as cifras para aumentar o volume de produção, a fim de atender ao gosto de todos os públicos.
A ascensão do streaming forçou a quebra de paradigmas no modelo industrial da TV no país. Se antes a Globo detinha as principais estrelas sob contratos de exclusividade, pagos mesmo quando estavam fora do ar, o fim de acordos por longos prazos atingiu nomes que pareciam imunes à uberização que assola o showbusiness, e, agora, talentos de alta patente serão contratados, se e quando forem, por obras específicas.
A desconstrução do que conhecemos como a Hollywood brasileira, fama emprestada à Globo especialmente pelo elenco estelar, tem sido acelerada pelo avanço da Netflix e de seus pares. A indústria do streaming pode ser uma migalha para o gigantismo de público da TV aberta, mas já é páreo para o número de assinantes da TV fechada.
Os trunfos da tela paga sob demanda, no entanto, passam longe da necessidade de reter a exclusividade de grandes talentos, modelo sustentado pela televisão por pelo menos seis de suas sete décadas.
No streaming, ninguém é de ninguém —vale a encomenda do produto e a entrega, sem pagamento de férias aos que trabalharam na produção.
A Globo é a última emissora de TV a abandonar um tipo de relação iniciado na era do rádio e perpetuado pela televisão ao vivo, quando o potencial de audiência estava diretamente relacionado à disponibilidade de um grande elenco para estrelar as suas produções em tempo real.
Nos últimos 20 anos, Record e SBT duelaram pelo prazer de roubar profissionais da Globo, do entretenimento ao jornalismo, mas faz pelo menos cinco anos que essas disputas se arrefeceram, especialmente no campo da dramaturgia.
Na era da TV sob demanda, as prioridades são outras, como a organização entre criação, produção e distribuição, com destaque para este último item, antes quase ignorado pela lógica de exibição em tempo real que só podia ser feita por uma única tela.
Ao planejar suas produções com mais antecedência, a Globo construiu um catálogo de títulos originais que se pagam, inicialmente, com assinaturas do serviço de streaming, e depois, com a publicidade da TV, aberta ou fechada —esta, abastecida de pagantes.
A antecedência demandada pelos modelos de distribuição propiciou um cenário mais confortável para a escalação de elenco, sem que seja mais tão crucial contar com a disponibilidade de todo um batalhão de grandes grifes.
Agora, se a Netflix quiser, pode disputar com a Globo o expediente de Fagundes em 2021, e a emissora terá tempo de buscar outras opções para reviver o Véio do Rio do remake de “Pantanal”, um dos papéis negociados pelo ator em meio à mudança recente de seu modelo de contrato.
Mas se a Globo sempre pautou os formatos de operação e programação da TV no Brasil, os demais canais abertos não tiveram ainda a chance de acompanhar a líder do mercado na preparação para enfrentar os gigantes do streaming.
Com exceção da Band, que tem canais pagos, e da Record, que disponibiliza o conteúdo na plataforma PlayPlus mediante pagamento de assinatura, as demais redes comerciais —SBT, Record e RedeTV!— não dispõem de endereços próprios para faturar com outras janelas de exibição.
Tampouco mostram fôlego financeiro para acelerar a produção de títulos que contemplem uma plateia disposta a pagar para ver, como já vem fazendo o serviço Globoplay.
A direção da Globo nega que vá extinguir todo o seu banco de talentos estratégicos, garantindo que alguns nomes permanecerão sob exclusividade da casa. Informa ainda que novos talentos, embora menos do que antes, têm sido abraçados por seu modelo antigo de contratos longos.
A individualização de telas, com cada consumidor vendo o que quer, revelou um espectador mais exigente com a identidade da tela, dando voz a cores, sotaques e gêneros que se viam mal representados ali. A necessidade de ampliar o leque de atores em cena também se mostrou determinante para os moldes atuais.
A não ser que um dia haja internet em banda larga de graça para todos, é certo dizer que a televisão, tal qual a conhecemos, poderá até perder uma fatia de público para outras telas, mas jamais perderá a soberania que lhe foi conferida ao longo desses 70 anos.