por Célio Heitor Guimarães
Ao dizer que “podem tirar o cavalinho da chuva”, em post aqui publicado, referindo-se ao acordo de leniência com a ninguenzada, o nosso Zé Beto fez-me lembrar de um delicioso episódio narrado pelo gaúcho David Coimbra e que faço questão de repetir para preencher com alguma graça e conteúdo este espaço – já que um cerrado complô está impedindo que eu abandone as letras, como desejo.
Conta Coimbra que, certo dia, o filho dele, Bernardo, o seu pequeno “Pocolino”, “na franja dos seis anos”, “choramingava por motivo reles, sentado à mesa de jantar”. David censurou-o:
– Se tu pensas que vai ganhar algo fazendo manha, pode tirar o teu cavalinho da chuva!
Diz que o alerta funcionou. Ou quase. Revela:
“A manha estancou, seguimos adiante com o jantar, mas, um minuto depois, já refeito, ele fitava o vazio, pensativo, o cotovelo fincado no tampo da mesa, o garfo na mão apontado para o teto como um mastro de bandeira. Ficou assim por um momento. Então, olhou para mim com as sobrancelhas franzidas de concentração e balbuciou:
– Papai…
– Que foi?
– Eu não tenho cavalinho.
“Levei alguns segundos para entender a que ele se referia. Aí sorri e expliquei:
– Ah, é só uma forma de falar.
“Seus olhos continuaram me fitando debaixo de uma ruga que a seriedade da questão cavou-lhe na testa.
– Mas, papai, se eu tivesse um cavalinho, por que tinha de tirá-lo da chuva? A chuva faz mal para os cavalos?
“Suspirei.
“– Não, filho, já disse: essa é só uma figura de linguagem. Uma imagem que a gente usa para dizer que outra pessoa deve desistir de algo.
“– Certo. Mas por que o cavalinho deve sair da chuva? Eu já vi cavalo na chuva. Ele não parecia triste. Ele pode ficar gripado?
“– Olha… – eu já estava confuso com todas aquelas perguntas, precisava de tempo para pensar. Mas ele não me deu tempo. Prosseguiu:
“– Eu não sei se ia conseguir tirar um cavalo da chuva, papai. Eu sou pequeno e o cavalo é grande. Como é que a gente faz pra tirar um cavalo da chuva?
“Todos aqueles questionamentos agropecuários me deixavam atrapalhado. Olhei para ele. Ele ainda me fitava com gravidade, esperando a resposta.
“– O cavalo, a chuva, nada isso tem importância – tentei, já um pouco agastado.
“– O que importa é o sentido do que eu queria dizer. O sentido da expressão. Quando falei aquilo, falei pra que tu desistisse de algo. De fazer manha. Entendeu? Agora come.
“Ele deu umas mastigadas no brócolis, mas não tirou o ar reflexivo do rosto. Estremeci quando ele me encarou de novo.
“– Papai…
“– O que foi?
“– Se eu tivesse um cavalinho…
“Foi um longo jantar”.
Gostou, leitor? Pois esta é apenas uma das crônicas incluídas no livrinho “As Velhinhas de Copacabana e outras 49 crônicas que gostei de escrever”, edição da também riograndense L&PM Editores, de David Coimbra, que na verdade foi quem escreveu esta coluna. Há outras 49 à sua espera.
Dê-se ciência a Célio Heitor Guimarães que curti muito o conto do cavalinho, o neto e a chuva, e estou morrendo de inveja pela delicada visão voltada à infância.
Bela crônica. Vou atrás do livrinho.
Com piá não se brinca. Lembro de uma parecida quando ele perguntou prá mãe porquê Jesus Cristo nasceu no dia 25 de dezembro mas morreu numa sexta feira sem dia fixo. Aí começou a mesma encrenca.