DIÁRIO DA PANDEMIA
* A ideia foi boa. Gravei o arranca-rabo dos vizinho ao lado. A patroa do cara queria não sei o quê e ele não queria, e ele queria não sei o quê e ela não queria. Desentenderam-se. Palavrões cabeludos foram pronunciados. Fatos acontecidos no passado foram trazidos para o presente. Pelos eriçaram-se. Achei muito bonito a gesto de terem lembrado das mães um do outro em episódios de difícil explicação e que em nada dignificaria aquelas senhoras, se veros fossem. Gravei tudo.
Passou um tempo e eu falei: é hoje. E esse hoje foi ontem à noite. Reinava a paz no condomínio. Botei o som bem alto. Todo o condomínio deixou suas novelas para prestar atenção. O mundo pegou fogo.
* No mundo da fantasia, quem morre volta a viver. Como eu brincava no tempo que matar, morrer era igual, tudo era brincadeira; se morria, desmorria. Quem sabe, naquele tempo já voasse sobre nós o corvo da ignorância, a ave da insensatez. Que ave má era aquela escondida entre as verduras no tempo das brincadeiras, se fingindo de esperança, trazendo impressa na cara a marca da Besta imunda! É bom matar os amigos se se pode revivê-los dizendo vamos pra casa. Eram matanças sem ódio, a bala varando o peito, a cabeça de quem fosse, era tudo brincadeira esse namoro com a morte. Então, a gente ficou adulta, acabou-se o que era doce, vamos para o trabalho, deixe as crianças de agora brincando de se matar.
* Não percam!!! Amanhã, às 10 horas em ponto, grande espetáculo circense. O médico que recomenda a introdução de substâncias via forevis para combater o Covid fará ele mesmo uma demonstração pública para provar a excelência do produto. Pede-se que pessoas mais sensíveis abstenham-se de comparecer. Será vetada a presença de crianças e senhoras grávidas. Doutor Forévis, como o rapaz ficou conhecido nos meios científicos, vai apresentar-se como veio ao mundo: limpo de intenções. Então, o Hino Nacional será posto na radiola e, em seguida, o general de plantão dará três tiros de canhão, dando início à sessão. Vendedores de pipoca e outras guloseimas estão permitidos para alardear seus produtos. Uma barraca de cachorro quente também abrilhantará os festejos. Pede-se que no momento da entubação se faça o mais respeitoso silêncio, se bem que se possa permitir algum risinho mal contido.
PENSAMENTÃO: Os índios do Brasil, exterminados pela civilização branca, são homenageados em marcas comerciais, como Rádio Tupy, Rádio Tamoio, Rádio Guairacá, Rádio Tingui, e por aí a fora. E ainda nem comecei a falar dos Biscoitos Aymoré.
E os fogos Caramuru, “que não dão chabu?”