por Thea Tavares
Uma cigana, um dia, sentenciou: você é de difícil convivência. Encontrará dificuldades em seus relacionamentos. O fato de sabermos disso hoje mostra que aquelas palavras, diferentemente do que ele dizia, não eram algo tão sem importância assim. Bem lá no fundo, ele sabia que faziam sentido e seguiu adiante, construindo um mundo em que pudesse, na pior das hipóteses, dar conta de tudo sozinho e, para tanto, confiava o suficiente na sua capacidade de superação e na esperança de contrariar as previsões ou de torcê-las a seu favor.
Estudante em intercâmbio, um belo dia, recebeu um rápido telefonema da namorada, que havia ficado no Brasil e que objetivamente dizia pouco naquele expediente, pois calculava no tempo da chamada os custos daquela telegráfica ligação internacional: – Precisamos conversar amanhã a tal hora! Anos depois, a moça ficou sabendo que aquelas palavras injetaram nele toneladas de adrenalina e sequestraram-lhe o sono. Entre um telefonema e outro, não dormiu. Virou a noite, organizando todo o alojamento, o escritório, a biblioteca… Faxina completa!
A notícia mais importante de sua vida estava para chegar e chegou no dia seguinte, conforme o combinado: ia ser pai! Seu modo de enfrentar as situações sempre foi algo muito simples e claro. Canalisava os pensamentos e as energias na execução de um plano em que coubessem todas as decisões, as ações, passo a passo, para enxergar solução ou o caminho até ela. Não se assustou para além da constatação de que sua vida nunca mais seria a mesma a partir daquela notícia. A bem da verdade, ele sonhava há muito com a chegada desse dia, pois teve um espelho na própria figura paterna que lhe transmitiu inteira confiança. Foi formatado no modo tradicional de enxergar o papel masculino como o de um membro provedor da família por excelência, embora isso nunca o impedisse de valorizar e de apoiar o trabalho, a carreira e as iniciativas das mulheres que passaram ou permaneceram em sua vida por maior ou menor quantidade de tempo.
Não importava se o serviço se estenderia até mais tarde, tinha toda uma rotina calculada milimetricamente para quando chegasse em casa: abraçar a família, repor as energias e verificar a lição da escola da filha. Podia cair o mundo lá fora, que não desligava o piloto automático das suas responsabilidades sem estar em dia com essa dedicação. Não era de escrever poemas ou fazer memoráveis declarações de afeto conjugal e nem paterno. A forma como expressava seu amor incondicional se baseava em trabalhar, trabalhar, estudar, estudar, trabalhar mais e prover a todos.
Era o avesso daquela Amélia, que a música diz que não tinha a menor vaidade. Seu prazer estava em garantir o melhor e mais digno para quem estivesse ao seu alcance. Assim se realizava e construía tudo em volta. Sua meiguice e sedução residiam justamente nessa engrenagem toda de promover bem estar. Era como ele funcionava. E não exigia menos na convivência com as outras pessoas, até mesmo com as filhas. Sua dedicação intensa consistia em ensinar-lhes valores para uma convivência social de respeito à vida e repassar-lhes todas as ferramentas capazes de fazerem-se as protagonistas da própria felicidade.
Foi pai três vezes oficialmente, de registro em cartório e papel passado. Não se sabe de quantos “afilhados” mais cuidou, ao longo de suas ações humanitárias, solidárias e generosas, pois guardava-as só para si e para quem convivia com ele num círculo mais íntimo e restrito. Viu muito sofrimento no mundo, nas crianças pelo mundo e sensibilizou-se com cada privação alheia. Assim como Scarlet O’Hara, a personagem principal do clássico “E o vento levou”, que prometeu sobre uma plantação devastada pelo fogo que nunca mais na vida a sua família passaria fome, ele se determinou a fazer o que estivesse ao seu alcance para diminuir a dor das pessoas e as mazelas da sociedade. E o que sabia fazer era trabalhar, trabalhar e trabalhar. Para prover.
A cigana só não disse o quanto, mesmo ao final das histórias com as mulheres que passaram ou que se retiveram um pouco mais de tempo em sua vida, ele seria sempre reconhecido e admirado pela beleza com que se dedicava a fazer um mundo melhor. No fundo, era um idealista e romântico incorrigivelmente pragmático, com um jeitão diferente de cantar em prosa e versos seu amor e de fomentar o incremento da consciência coletiva sobre os compromissos e as responsabilidades sociais. Expressava esse apreço todo nos feitos, nas realizações, na educação das filhas e no cálculo utilitário de cada minuto do seu dia, empregado em se constituir na personificação do ideal de um paizão em tempo integral. Esse é seu retrato mais fiel e o único do álbum de fotos em que aparece sorrindo.