DIÁRIO DA PANDEMIA
*** Eram não sei que horas do dia e o silêncio estava ensurdecedor. Nem um adejar de asas de mosca, ou cântaro cheio de água espatifando-se no chão ou mesmo o vizinho conversando com sua coruja empalhada. Absolutamente nada de som. Parecia que todo mundo tinha ido embora. Para quebrar aquela paz, gritei:
-Dezesseis!
Foi o mesmo que cutucar um formigueiro. De todos os apartamentos vinham vozes inquietas:
– São só nove. Dezesseis não cabem.
– Você não contou com esta que está em cima da cristaleira. Na minha conta dá vinte e um.
– Não chega nem a oito, seus loucos – gritava o cara do 14.
Quando deu a hora do Jornal Nacional abandonei a festa e me aboletei no sofá. Não sem antes ter gritado a plenos pulmões: “Façam silêncio, bando de corvinas”.
*** A cozinha está cheia de formiguinhas, isso só pode ser coisa de Dona Laura, vizinha do lado direito. Fiquei dois dias inteirinhos catando formiga e colocando dentro de um pacote. Tive essa pachorra. Agora vou lá na porta da madama fazer a entrega a domicílio.
*** Hoje foi meu dia de fazer canjica. Tenho quatro apartamentos no meu grupo, e a gente sempre se presenteia, que é para manter a chama acesa. Outros caras se ligam a outros apartamentos, e assim vamos tocando o barco. Bom. Fiz a canjica, separei um tanto pra mim e dividi o restante em quatro partes, uma para cada morador da lista. A entrega é sempre feita no mesmo horário para que ninguém cometa a imprudência de abrir a porta no momento da doação e ter que dizer bom dia boa tarde e nessa de falar lá se vão vírus ao léu. Ali pela hora da janta a gente recebe um telefonema, um WhatsApp, cada um agradecendo a oferenda. E assim nos mantemos humanizados.
Só que desta vez cansei de esperar e nada de me ligarem. Fiquei com a pulga atrás da orelha, seja lá o que isso signifique; provavelmente não signifique nada. Daí, uma vozinha bem baixinha gritou dentro do meu cérebro: “O leite de coco”. Corri ao banheiro e lá estava ela, a garrafinha do leite de coco, que é ali entre os xampus que guardo essas coisas de cozinha. Se a garrafinha ainda estava sobre o bidê, que será que botei na canjica? Me atrevi a provar minha poção e entendi porque ninguém tinha telefonado.
PENSAMENTÃO: Os caras queimam o mato, eu não digo nada. Eu queimo meu matinho esperto, os caras falta me comerem vivo.