de Roberto Prado
Palavra de escoteiro que está nas sagradas escrituras que no início era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. Escavando direitinho, encontraremos no passado imemorial de todas as culturas essa mania humana de apresentar como simultâneos os atos de criar a manada e dar nome aos bois.
Até aqui chegamos. E vamos acrescentar, de passagem, como quem não quer nada, que esse ato fundador, esse compartilhar de palavras sentidas e significadas, essa divisão coletiva do mundo simbólico, representa o nosso despertar para o reconhecimento daquilo que mais se aproxima do que gostamos de chamar de “humanidade”.
É por isso que, talvez, a maior insurgência contra a porção gente da civilização seja chamar as coisas de coisas, trens, trecos, negócios ou menos que isso. E proceder assim de caso pensado, não sob o efeito de uma paulada na cabeça, um derrame cerebral ou por ter adquirido o hábito de dar milho a bicicleta, mas reescrever os dicionários, deliberadamente, como acontece hoje no país das palavras mutantes.
Famosos artistas, piedosos bispos, políticos de nomeada, empresários de renome e cientistas de escol descobriram esse filão e o exploram sem dó, com tamanha fúria fratricida que o idioma luso corre o risco de voltar ao pó que era antes de emergir das trevas. Não sem antes cumprir toda a sentença, passando de língua que mamãe ensinou para um pavoroso grude de verbos gosmentos, sujeitos molengas, predicados escorregadios e objetos inexistentes.
Palavra de honra que agora vou explicar melhor. Se dar nome aos bois é um ato fundador, essa mesma capacidade de criação foi transformada num poder semelhante, mas exercido às avessas, da luz para a escuridão, com o objetivo de subtrair o nome das coisas e confundir uma coisa com outra, para que tudo fique a mesma coisa, só que sem coração e sem memória.
Que pátria amada salve salve resiste a esta dança alucinada de palavras que começam o dia sem saber exatamente o que significarão no final do expediente? Como capturar o sentido de frases corriqueiras como “o ladrão foge da polícia para não ser preso”, quando, muito melhor do que simplesmente escapar das garras da lei é mudar as definições de “ladrão”, “polícia” e “preso”? Como resistir a argumentos tão fortes e bem fundamentados como: “É, você pode dizer o que quiser, pode até ter razão, mas essa merda dá dinheiro!” Viu? Até nome feio está valendo.
Acompanhamos, assombrados, a escalada vertiginosa dessa onda avassaladora que nos assalta. Até mesmo a tradicional indústria da palavra falsificada, antes uma das mais prósperas da nossa economia – e com importante contribuição do Paraná, vem sendo amplamente superada pelo crescente setor do roubo de significados. Os empreendedores interessados em descolar os termos das suas designações originais, além de incentivo fiscal e terraplenagem gratuita, têm a sua tarefa favorecida pelo momento histórico. Hoje, qualquer porcaria aspira tornar-se marca, ícone e símbolo, para depois ser preenchida pelo conceito que estiver mais à mão. E sou capaz de jurar que por este buraco de cerca passa boi sem nome, passa boiada anônima, passa quase tudo.
Você eu não sei, mas eu vou continuar chamando pelos velhos nomes os meus bons amigos Barroso, Pitanga e Da Cara Preta, enquanto corremos os quatro atrás da Vaca Mimosa, pois até quem está arriscado a ficar sem palavras precisa garantir o leite das crianças.
Aquele comentário, nada a ver, mas que eu estava procurando quando caí aqui, o que, de qualquer maneira, gostei muito: boi barroso e boi pitanga seriam o mesmo ou, talvez, dois? Afinal, diz a letra “o teu lugar”, como se fosse um apenas e, sendo um, sua cor seria o castanho-avermelhado, como o são, um tipo barro e um de pitanga? Ou branco-amarelado, como encontrei? Mas, barroso também seria boi selvagem ou indomável. Então ficam estas dúvidas, já que é sabido que temos pitangas vermelhas, amarelas e roxas, bois não.