por Thea Tavares
O espaço da garagem, no oco do prédio, forma uma letra U, que fecha a parte de cima, se transformando num O, quando encontra a lateral do edifício vizinho. Daí, esse oco quase vira eco, pois funciona como uma caixa de ressonância e de amplificação das conversas que rolam entre as sacadas da vizinhança e as nossas áreas de serviço. É por ali que as duas edificações se comunicam. Também por onde a gente melhor se informa sobre a vida alheia. Se alguém furar a tal da quarentena, todo mundo vai ficar sabendo imediatamente. Certas pessoas têm rostos e outras, só vozes. Alguma privacidade há de resistir nessa comunidade.
Ontem, fiquei sabendo que a amiga da fulana fez uma cirurgia delicada e se recupera em casa e que o filho dessa é quem sai para ir ao mercado, vai na farmácia, aplica injeção, faz de tudo! Ah, e que a Providência Divina escolheu a dedo a hora de costurar a vivente: bem no início da pandemia, quando esse cuidador de estimação, cujo expediente normal é o da tecnologia da informação, foi designado para trabalhar em esquema de home office.
Também já faz um tempinho agora que uma das vozes – da minha área de serviço, não consigo enxergar seu rosto, só vejo os braços gesticulando as explicações – orientou a mulher bem de cima do meu “ap” a solicitar o auxílio emergencial de 600 reais. Se conseguiu sacar, é outra história. Mas a clareza das informações e a segurança que a bendita passou mereceriam fazer dela uma senhora-propaganda da Caixa Econômica Federal. Aliás, não. Suspeito que facilitar a vida das pessoas que necessitam desse recurso nem seja a real intenção do governo. Deixa quieto.
Esses dias, tive medo de que uma lá despencasse sobre os carros da garagem, já que ela desembestou a limpar os vidros do apartamento antes que a ansiedade do isolamento a consumisse. Ela redefiniu a expressão “carpir um lote” porque, para não subir pelas paredes e azucrinar a paciência dos parentes, inventou outra forma de gastar energia e trabalhar pesado. Se a diarista for bem esperta no retorno ao serviço, vai perceber que será o momento ideal de pedir um aumento na remuneração, uma vez que a patroa já sabe bem o valor desse trabalho e os riscos embutidos nele.
Tem uma senhorinha que costuma tomar banho de sol, quando faz sol em Curitiba, para nutrir-se de vitamina D na única janela da casa que permite esse luxo. Ela atira os braços por cima do cobertor, que fica se bronzeando ali também, sempre um pouquinho antes da hora do almoço. Aproveita para absorver também o cheiro maravilhoso da comida do “master chef” do nosso prédio, que invade as narinas da gente que nem aquelas fumacinhas dançantes dos desenhos animados da TV, humilhando meu feijão com arroz e legumes descongelados. Uma provocação virou combinado no grupo de zap-zap do condomínio: no primeiro final de semana depois da pandemia, vai todo mundo filar boia na casa do vizinho. No cardápio, o bendito frango assado com batatas rústicas e alecrim. Quando ele inventa de usar manjericão na comida, então, perfuma o prédio inteiro.
Mas em se tratando de gente, nem tudo é tão cor-de-rosa nessa convivência íntima e coletiva trazida pelo isolamento social. Estamos mais tempo dentro de casa do que o normal. Virou um grande final de ano e feriadão prolongado juntos. As eternas louças para lavar não me deixam mentir. Aparecem como que por mágica, por geração espontânea. É o oposto do mistério do sumiço das meias. O tempo todo tem louça pra lavar.
O rodízio no abastecimento de água em Curitiba acabou criando uma outra situação inusitada: a figura do fiscal de… daquilo mesmo que você pensou. Do alheio! É a pessoa que tem uma habilidade auditiva incrível, capaz de escutar uma torneira aberta, um chuveiro, uma descarga de vaso sanitário a inúmeras paredes de distância e dedos ligeiríssimos, que colocam textão em detalhes no zap-zap, para todo mundo ficar sabendo e dar tempo dos demais confirmarem que ouviram o som da descarga puxando a água dos canos e da caixa. A mesma água que vai faltar na hora que outro for tomar banho ou fazer comida. Medo de que alguém fora da casinha invente de querer propor pena de morte aos acometidos de incontinência ou viciados lavadores de roupa. Sem contar que já tem gente fazendo live com psicólogo e com gastro por causa do pânico de ir ao banheiro em dia de racionamento. Trava só com a lembrança do avatar do grupo de zap do condomínio, estampando o número de mensagens ainda não lidas. Pensa!
Parece o seriado global A Grande Família. Mas, em vez de casas separadas, moram todos por cima e ao lado uns dos outros. Correndo com o cachorro ou arrastando móveis na hora do telejornal, batendo porta, desafinando que dá dó, deixando cair objetos e perguntando se alguém precisa de alguma coisa do supermercado, da feirinha na rua ao lado, da padaria, a fim de aproveitar uma das raras saídas desse ou daquele outro. Diante da quantidade de gente que vejo passar lá fora, alheia aos perigos para si e para os demais dessa doença ainda sem cura, causada pelo vírus invisível, e também por causa das notícias que chegam e dão conta do aumento dos problemas sociais confinados nessa pandemia, não troco minha vizinhança por outra. Se melhorar, estraga.
Thea, você a poetisa do cotidiano.
Obrigada, Simone!
Pela leitura sempre e pela consideração.